O artigo científico de autoria de membros da comunidade brasileira de pesquisa em Materiais em destaque neste mês é: Detecting the phonon spin in magnon–phonon conversion experiments. J. Holanda, D. S. Maior, A. Azevedo & S. M. Rezende. Nature Physics (2018) doi:10.1038/s41567-018-0079.
Redes de átomos em rotação
No início deste mês de abril, uma equipe científica brasileira anunciou, em artigo publicado na Nature Physics (fator de impacto 22,806), uma impactante novidade sobre a dimensão atômica e subatômica da natureza, objeto da Física Quântica, na qual minúsculas partículas que também se comportam como ondas movimentam-se sem parar.
A equipe, liderada pelo professor Sergio Machado Rezende, conseguiu detectar experimentalmente, pela primeira vez na história da ciência, fônons com spin – algo parecido a uma vibração coletiva de átomos interligados (fônon) girando em torno de um eixo (spin). “Nunca qualquer pessoa tinha observado um fônon com spin antes destes experimentos”, contextualiza Rezende, que é professor da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE).
A pesquisa foi totalmente realizada no Departamento de Física da UFPE, com financiamento de agências de apoio à pesquisa federais (CNPq, CAPES e FINEP) e estadual (FACEPE).
A descoberta poderá ter um impacto importante na chamada “spintrônica”, tanto do ponto de vista fundamental (compreensão de fenômenos) quanto aplicado. Assim como a eletrônica utiliza a carga elétrica dos elétrons para desenvolver tecnologia, a ainda incipiente spintrônica aproveita o spin das partículas para codificar dados e armazená-los, transportá-los e decodifica-los. Nesse contexto, a evidência apresentada no artigo da Nature Physics abre possibilidades de aproveitamento dos fônons no desenvolvimento de dispositivos spintrônicos.
Uma descoberta que quase não aconteceu
A pesquisa que gerou o artigo foi desenvolvida dentro do doutorado em Física de José Holanda da Silva Júnior, defendido em 20 de abril deste ano na UFPE, e orientado pelo professor Sergio Rezende. Além de ser conhecido por ter exercido o cargo de ministro da Ciência e Tecnologia de 2005 a 2010, Rezende trabalha com materiais magnéticos há mais de meio século, sendo um cientista internacionalmente destacado nessa área. Rezende também é sócio fundador da SBPMat.
A ideia do trabalho de tese era gerar uma onda de spin em um material ferromagnético adequado e convertê-la em um uma onda elástica. Dito em termos quânticos, o objetivo era converter “mágnons” em “fônons” – transformação que é possível realizar desde que, nos materiais ferromagnéticos, o movimento dos spins pode provocar vibrações na rede de átomos.
A ideia da conversão mágnon – fônon foi bastante estudada nas décadas de 1960 e 1970, comenta Rezende. Entretanto, naquele momento, não foi possível obter evidências experimentais claras da existência da conversão, já que os materiais disponíveis para fazer os experimentos (materiais “massivos”) limitavam a observação do efeito. “Usava-se cilindros de materiais ferromagnéticos”, conta Rezende. “O efeito ocorria, mas era dentro do material e não havia forma de testar se realmente ele estava ocorrendo”, completa. Para se obter evidências mais definitivas, era necessário utilizar camadas muito finas de material ferromagnético.
Nos últimos 20 anos, explica Rezende, desenvolveu-se tecnologia para fabricar filmes finos de diversos materiais. Com isso, o interesse acadêmico pela conversão mágnon – fônon voltou, gerando diversos avanços na compreensão do fenômeno na última década.
Nesse novo contexto, no início do trabalho de tese de José Holanda, em 2014, o doutorando, seu orientador e o colaborador Antônio Azevedo da Costa (também professor do Departamento de Física da UFPE) conseguiram fabricar um filme fino do material ferromagnético mais adequado para estudar a conversão mágnon – fônon, a granada de ítrio e ferro. Com esse filme fino, a equipe preparou amostras em forma de fitas de 2 x 12 milímetros quadrados de superfície e 8 micrômetros de espessura, e realizou com elas dois tipos de experimentos principais.
O primeiro consiste, em grandes linhas, em aplicar radiação de micro-ondas numa das duas pontas do filme, gerando uma excitação nos spins do material. Como consequência, a rotação (spin) se orienta em torno do campo magnético que é aplicado (fenômeno conhecido como precessão). Essa precessão coletiva inicia numa ponta da amostra e se propaga como uma onda até chegar à outra ponta, motivo pela qual é chamada de “onda de spin”.
Se o campo magnético aplicado à amostra for uniforme, a onda de spin se atenua e não chega a se converter em onda elástica. Por isso, a equipe de Pernambuco utilizou ímãs de terras-raras (um em cada ponta da amostra) para provocar variações no campo magnético ao longo do filme, acompanhando o deslocamento da onda de spin.
Os experimentos com micro-ondas geraram evidências de que a conversão mágnon – fônon estava acontecendo, mas o grupo considerou importante confirmar ou não os resultados por meio de medidas do chamado “espalhamento Brillouin”. Nesse experimento, aplica-se luz laser em algum ponto da amostra e se analisa o espalhamento da luz pelas excitações no material. O resultado permite determinar qual é a natureza da excitação (neste caso, mágnon ou fônon) que está interagindo com a luz. “A grande vantagem de usar um filme em vez de um material massivo é que você pode incidir o laser em qualquer posição do filme e pode variar o ângulo de incidência”, explica Rezende.
José Holanda ainda estava no início do doutorado, portanto havia de tempo de sobra e as perspectivas eram muito boas. Entretanto, o equipamento de espalhamento Brioullin da UFPE apresentou alguns problemas e, por ser um instrumento científico de certa complexidade, não era possível prever quando voltaria a ficar em condições de operar normalmente. Assim, enquanto dois estudantes se dedicavam a consertar o equipamento, Holanda se envolveu em outros trabalhos do grupo, obtendo bons resultados e participando de vários artigos.
Foi só no segundo semestre de 2017, no final de seu doutorado, que José Holanda pôde voltar ao equipamento de espalhamento Brioullin para completar seu trabalho sobre conversão mágnon – fônon. “Nós não sabíamos se ele ia conseguir fazer as medidas porque isso não é uma coisa trivial, e seria a primeira experiência dele com o equipamento”, conta o professor Rezende. Os experimentos foram finalmente realizados com ajuda do mestrando Daniel Souto Maior Pifano Ferreira.
A espera valeu a pena. Além de verificar que a onda de spin (mágnons) submetida a um campo magnético não uniforme realmente tinha se convertido em onda elástica (fônons), a equipe se deparou com uma surpresa: esses fônons espalhavam luz circularmente polarizada – uma evidência de que tinham spin. “Nós não esperávamos que o fônon produzido pela conversão do mágnon também tivesse um certo movimento de rotação, que é o que a gente chama de spin”, conta Rezende.
Depois de fazer essa descoberta pela via experimental, a equipe fez os cálculos teóricos correspondentes. “Confirmamos que a teoria previa, realmente, que o fônon tivesse spin, mas nós não sabíamos a teoria antes”, revela o professor Rezende.
Em questão de semanas, Rezende, Holanda, Azevedo e Maior terminavam de preparar um artigo reportando esta pesquisa, o qual, após ser ampliado e aprofundado a partir de sugestões dos revisores, foi publicado no passado 2 de abril na prestigiada Nature Physics.