Quando, em 1970, Marília Junqueira Caldas começou a trabalhar com informática, o uso de computadores era incipiente no Brasil, inclusive nas universidades. Contudo, a partir de então, as ferramentas computacionais acompanharam constantemente a pesquisadora na sua trajetória de descobertas científicas.
Naquele momento, Marília era aluna do curso de graduação em Física da Universidade de São Paulo (USP), onde ingressara em 1968. Ela se formou em 1974 e, no ano seguinte, começou o mestrado em Física na mesma instituição. Obteve o diploma de mestre em 1978 com uma dissertação que envolveu modelagem matemática aplicada à Oceanografia. No mesmo ano, ingressou no doutorado em Física, também na USP. Em 1981, defendeu a sua tese em Física de Materiais, área na qual atua até hoje, tendo feito uma série de contribuições de impacto em materiais como silício, polímeros condutores, grafeno e estruturas híbridas.
Entre 1983 e 1984, ela fez pós-doutorado no Solar Energy Research Institute (SERI), nos Estados Unidos. De volta no Brasil, ela se tornou professora do Instituto de Física Gleb Wataghin (IFGW) da Unicamp. Em 1986, voltou à alma mater, enquanto professora do Instituto de Física da USP (IFUSP) no Departamento de Mecânica e Física de Materiais.
Ao longo da década de 1990, a cientista atuou na direção e administração do Centro de Computação Eletrônica do IFUSP. Em 2000 tornou-se professora titular da USP. De 2010 a 2014, desempenhou-se como chefe de departamento.
Hoje com 74 anos, Marília continua lecionando na USP. A partir da sua iminente aposentadoria, ela se dedicará totalmente a continuar as pesquisas que vem realizando em materiais semicondutores orgânicos e inorgânicos com aplicação em dispositivos que interagem com a luz.
Com mais de 100 artigos científicos publicados em periódicos internacionais e 23 orientações de trabalhos de mestrado e doutorado realizadas, Marília Caldas é bolsista de produtividade em pesquisa do CNPq no nível Pesquisador Sênior.
Na abertura do XXII B-MRS Meeting, no dia 29 de setembro deste ano, ela vai proferir a Palestra Memorial Joaquim da Costa Ribeiro, honraria outorgada anualmente pela SBPMat a pesquisadores e pesquisadoras seniores com destacada trajetória dentro da comunidade de pesquisa em Materiais.
Saiba mais sobre esta destacada cientista nesta entrevista que ela concedeu ao Boletim da SBPMat.
Boletim da SBPMat: Conte-nos como se tornou uma cientista.
Marília Junqueira Caldas: Matemática foi sempre um grande atrativo para mim, iniciando como brincadeira quando criança, e continuando sempre na adolescência – inicialmente tocando a geometria e a beleza das formas, suas aparições na natureza, seus movimentos, e assim por diante. Meu pai era arquiteto e no início eu pensava em ser também. Durante o colegial – que escolhi, como se chamava na época, o “científico” – tive aulas de Física com a Profa. “Dona” Célia, brilhante e motivadora como poucos! Minhas colegas também se lembram da Dona Célia, e foi mesmo ela, em suas aulas, quem me impulsionou a prestar o vestibular de Física (ao mesmo tempo que o de Arquitetura!). Só para completar, no científico com nossa professora, o livro texto adotado era o do Halliday, que depois eu encontrei nos primeiros anos do IFUSP!
Durante a graduação, logo depois daqueles “anos de chumbo” 1968-69, em 1970 iniciei minha vida no ambiente computacional. Isso se deu pela existência no IF do acelerador de partículas (Pelletron) de Física Nuclear que precisava e implantou o Setor de Matemática Aplicada (SEMA), ou seja, um setor de análise de dados adquiridos pelo acelerador e que deveriam ser “traduzidos”. Sob a orientação do Prof. Claudio Mammana iniciei minha vida na informática, inicialmente para o atendimento de usuários o que, mais tarde, me levou a ser uma usuária. Fui introduzida à análise de dados, ao sistema FORTRAN de programação, e assim por diante, de forma que no prosseguir da vida acadêmica continuei a utilizar os recursos computacionais para obter resultados para os problemas que despertam minha curiosidade. Outro fator muito importante foi poder frequentar a biblioteca do IFUSP, uma vez que à época era o local de chegada de novidades científicas pelas revistas internacionais.
Quanto aos tópicos de interesse, eram muitos, em diferentes direções da Física. Ingressei em laboratórios experimentais, e finalmente, no início do Mestrado, passei ao mar, às correntes marítimas, como se desenvolvem e como prosseguem – área da Dinâmica dos Fluidos que nos encanta e nos amedronta, principalmente se, como eu, estava muitas vezes perto do mar desde a infância. Assim, durante o Mestrado pude ir ao oceano (Navio Oceanográfico Prof. Wladimir Besnard) para coletar amostras de “água do mar”, experiência inigualável. Quanto à dissertação especificamente, sob orientação do Prof. Luiz Brunner de Miranda, trabalhei em análise de dados de corrente coletados para entender o fluxo de corrente no nosso litoral. Nessa pesquisa já veio meu interesse pela vida marinha, e suas dependências da química e da fotoquímica do mar, do oceano, e me dirigiu ao estudo de moléculas etc. Assim, já em outro grupo agora no IF, passei incialmente ao estudo experimental de microamostras de várias origens através de cromatografia de gás, e no continuar retomei minha característica matemática-computacional e me dirigi à mecânica quântica de sólidos de meu interesse e de interesse global à época, especificamente, semicondutores como o silício (Si) e o efeito da presença infinitésima de outros átomos, elementos, no seu “corpo”, o que é chamado de defeitos em semicondutores. É interessante notar que o nome “defeito” é estranho, pois são eles que dotam o semicondutor da propriedade que desejamos, como por exemplo fotoatividade. No meu caso dirigi-me ao Grupo de Estrutura Eletrônica de Materiais, no Departamento de Física dos Materiais e Mecânica, onde fiz meu doutorado sob a orientação do Prof. José Roberto Leite, infelizmente já falecido.
Passo assim à minha atividade no doutoramento, que focalizou estados de “defeitos” em Si, mas que era feito em um grupo que investigava várias famílias de semicondutores tetraédricos, e principalmente me introduziu ao uso de cálculos de estrutura eletrônica, extremamente importantes para o desenvolvimento mundial de toda a ciência de dispositivos eletrônicos e optoeletrônicos.
Boletim da SBPMat: Pense nas descobertas científicas que fez ao longo da sua carreira e descreva brevemente aquelas que você considera mais relevantes ou interessantes.
Marília Junqueira Caldas: Nossa primeira descoberta bastante impactante para toda a comunidade de semicondutores trata-se de uma impureza em Si, a substituição de um átomo do cristal por um átomo de oxigênio (O). Sendo o número de elétrons de valência do O igual ao do Si com mais 2 elétrons extra, pensava-se que agiria como um doador duplo, tal como para as impurezas isovalentes enxofre (S) e selênio (Se), com maior condutividade que o semicondutor puro, porém nosso estudo mostrou que no caso do O ocorre uma reorganização estrutural na localização do defeito, acoplamento elétron-fônon, o que na realidade introduz um estado aceitador (captura elétrons) no gap do Si. Assim, a criação de um estado condutor foi descartada, e o resultado foi associado a um defeito etiquetado naquela época (final dos anos 70, início 80) como centro-A em Si, que extrai os elétrons condutores do sistema. Esse trabalho foi parte de meu doutorado, e foi realizado com o que havia na época para cálculos de primeiros princípios realistas. Como era comum, meu trabalho ficou amplamente conhecido por colegas pela apresentação em conferência internacional e, apesar de ser pouco citado (pelas medidas de hoje), o resultado agora está no conhecimento de base para dispositivos de Si [Caldas et al. 1980]. Continuo até hoje investigando defeitos em vários diferentes semicondutores [Atambo et al. 2019]. Em outra vertente, após meu doutoramento passei a me interessar pelos semicondutores orgânicos, e ressalto aqui nosso trabalho no final dos anos 80 sobre a Polianilina (PANI), um polímero que gerava controvérsia na comunidade, pois era considerado isolante, ou semicondutor de gap alto, mesmo com dopagem, porém experimentalmente se via o comportamento de semicondutor do tipo p com ótima condutividade. Mostramos que essa propriedade muito interessante vem diretamente da desordem inerente aos sistemas poliméricos, o que causou bastante impacto na comunidade. Nesse caso utilizamos métodos empíricos e semiempíricos que nos permitiram acessar sistemas muito extensos [Galvão et al. 1989]. Continuei trabalhando em sistemas poliméricos, passando aos condutores poliparafenileno (PPP) e poliparafenileno de vinila (PPV), agora já em colaboração com a Universidade de Modena, visando propriedades eletrônicas e passando a propriedades óticas, aplicando majoritariamente funcionais de primeiros princípios [Ferretti et al. 2003]. Penso que nossa contribuição ao entendimento do comportamento desses sistemas foi impactante na comunidade. Em outra vertente muito comum agora, me interessei e trabalhamos em sistemas bidimensionais como o grafeno e variantes, com defeitos ou outros componentes atômicos, área em que também continuo trabalhando [Valência e Caldas 2017, Bonacci et al. 2022]. Em outra visão, me dirigi aos sistemas de interação orgânico/inorgânico, como por exemplo politiofeno (PT) ou oligotiofenos e superfícies óxidas, e assim por diante, onde ainda prossigo dada a importância para a montagem de dispositivos. Nestes últimos dez anos (ou mais) tenho me concentrado principalmente em dispositivos para conversão de energia solar, ou seja, dispositivos fotovoltaicos, pela necessidade mundial de energia limpa, que será cada vez maior. Como último comentário, devo dizer que muito importante foi a criação dos Institutos Nacionais de Ciência e Tecnologia INCTs, dos quais faço parte desde o início através do IMMP (Instituto Multidisciplinar de Materiais Poliméricos) que é agora INEO (Instituto Nacional de Eletrônica Orgânica). A colaboração e interação entre pesquisadores do Brasil foi ampliada e motivada através dessa grande iniciativa dos INCTs, que no meu caso foi importantíssima pela interação com o lado experimental.
Boletim da SBPMat: Do ponto de vista da formação de pesquisadores, criação de laboratórios, divulgação científica e demais aspectos da carreira de pesquisador, quais são as suas realizações que tiveram mais impacto ou lhe deram mais satisfação?
Marília Junqueira Caldas: É difícil a escolha, mas provavelmente o que me trouxe mais satisfação foi, durante meu trabalho como Coordenadora do Centro de Computação Eletrônica da USP (CCE), a criação e colocação em função do Programa Pró-Aluno, que trouxe aos estudantes da nossa universidade a possiblidade de trabalhar diretamente com microcomputadores o que, à época, era muito difícil e somente possível para jovens de família de alta renda. Essa realização não entra nas “categorias” acima mencionadas, porém a administração de uma universidade é importantíssima para a efetividade e continuidade dos progressos da humanidade. No CCE me dediquei à montagem da rede USPnet, à ampliação e reforço de qualidade dos computadores de alto desempenho disponíveis para atividades de pesquisa, e como já frisei, à disponibilidade para estudantes de acesso à computação. Quanto ao meu trabalho de pesquisa, a interação com pesquisadores brasileiros fora do meu instituto, seja no estado de São Paulo, em outros estados do Brasil, ou no exterior, sempre foi um estímulo importantíssimo para a continuidade da minha atividade de pesquisa. Finalmente, saber que ajudei a formar, pela atividade de orientação, pesquisadores de alta qualidade, é o meu retorno mais alto.
Boletim da SBPMat: Na sua profissão de docente e pesquisadora, você encontrou muitas dificuldades relacionadas ao fato de ser mulher?
Marília Junqueira Caldas: Como em qualquer profissão essas dificuldades existem, talvez – assim espero – agora menos do que na minha época. Devo dizer que devido à minha família tive menos problemas que o usual, já que minha avó materna era uma ativista antirracismo e antimachismo, sempre aplaudida pelo meu avô; meus pais eram extremamente fortes nessas direções e me incentivaram sempre. Já no trabalho na comunidade científica enfrentei problemas, como era comum, porém meu orientador Prof. José Roberto Leite sempre teve um posicionamento positivo e antimachista quanto à formação de alunas e reforçou nossas atividades, inclusive de pós-doutoramento em outras instituições, de forma exemplar. Quanto ao problema que ainda me recordo como mais emblemático, foi quando pedi recursos a uma agência de fomento do Brasil para fazer minha fase de pós-doutoramento no exterior, e um esforço maior que o normal foi necessário – mas me foi concedida a bolsa. Devo ainda ressaltar que, conforme orientação do Prof. Leite, não colocava meu nome completo ao submeter um trabalho, apenas as iniciais e o sobrenome para evitar o efeito machista, e me lembro até hoje quando pela primeira vez fui a uma conferência no exterior e apresentei um trabalho. Naquela época, levavamos o trabalho completo, a ser publicado no anal ou em uma revista que seria divulgadora, em papel e entregavamos ao comitê da conferência antes da apresentação oral. Ao entregar meu trabalho me recordo da reação do colega: “Ah! So Caldas is a woman?”. Respondi: “Yes, it is me!”.
Boletim da SBPMat: Deixe uma mensagem para nossos leitores mais jovens que estão iniciando uma carreira de cientistas no Brasil ou estão cogitando essa possibilidade.
Marília Junqueira Caldas: A ciência é sempre uma estrada linda, intrigante e, sempre que você vê uma coisa que não entende, é instigante. Essa estrada linda tem um atalho, uma bifurcação em cada milímetro, que você pode estudar, investigar, conhecer. Aparte essa visão quase poética, o desenvolvimento da ciência no mundo atual traz várias oportunidades de trabalho à juventude, em direções diferentes, e no trajeto se pode ainda aprender e ensinar mais.
Referências citadas
Atambo, M.; Varsano, D.; Ferretti, A.; Ataei, S.S.; Caldas, M.J.; Molinari, E.; “Electronic and optical properties of doped TiO2 by many-body perturbation theory” – Physical Review Materials 3, p. 04501, 2019.
Bonacci, M.; Zanfrognini, M.; Molinari, E.; Ruini, A.; Caldas, M.J.; Ferretti, A.;” Excitonic effects in graphene-like C3N” – Physical Review Materials 6, p. 034009 2022.
Caldas, M.J.; Leite, J.R.;Fazzio, A.; “Theoretical-Study of the Si-A Center” – Physica Status Solidi B 98, p. K109, 1980.
Ferretti, A.; Ruini, A.; Molinari, E.; Caldas M.J.; “Electronic Properties of Polymer Crystals: The Effect of Interchain Interactions” – Physical Review Letters 90, p. 086401, 2003.
Galvão, D.S. ; Santos, D.A. ; Laks, B. ; Melo, C.P. ; Caldas, M.J.; “Role of Disorder in the Conduction Mechanism of Polyanilines” – Physical Review Letters 63, p. 786-789, 1989.
Valencia-García A.M.; Caldas, M.J.; “Single vacancy defect in graphene: Insights into its magnetic properties from theoretical modeling” – Physical Review B 96, p. 125431, 2017.