Cientista em destaque: Yvonne Primerano Mascarenhas.

Yvonne Primerano Mascarenhas
Yvonne Primerano Mascarenhas

Na noite de 22 de setembro deste ano, em Balneário Camboriú (SC), durante a abertura do XVIII B-MRS Meeting, Yvonne Primerano Mascarenhas, professora aposentada da Universidade de São Paulo (USP), proferirá a Palestra Memorial Joaquim da Costa Ribeiro, uma honraria que a SBPMat outorga anualmente a um pesquisador com destacada trajetória no Brasil. Na palestra memorial, a cientista falará sobre a evolução da cristalografia (estudo da estrutura de materiais cristalinos) no Brasil, uma história que ela pode narrar em primeira pessoa.

De fato, a professora Yvonne foi a pessoa que introduziu e desenvolveu no país, a partir do início da década de 1960, a cristalografia estrutural e molecular por raios X, hoje amplamente usada em pesquisa, desenvolvimento e inovação no Brasil. A técnica permite conhecer, de forma completa, como estão dispostos no espaço os átomos e moléculas que compõem a organizada estrutura dos materiais cristalinos.

Yvonne Primerano nasceu em 21 de julho de 1931 em Pederneiras, interior do Estado de São Paulo. Quando ela tinha 10 anos, depois de viver um tempo na capital paulista, a família Primerano se mudou para a cidade do Rio de Janeiro em função do trabalho do pai. Capital do país, a “cidade maravilhosa” da década de 1940, além de ser acolhedora e segura, ofereceu à família um grande leque de possibilidades, principalmente de cultura e formação.

Yvonne cursou o ensino secundário no Colégio Mello e Souza, uma conceituada escola particular carioca. Devido a seu gosto pela literatura, no último ciclo do secundário, a moça optou pelo então chamado “curso clássico”, que aprofundava no estudo da Filosofia e as Letras e abordava mais superficialmente as Ciências da Natureza. Apesar disso, foi nas aulas de Química ministradas por um ótimo professor chamado Albert Ebert, que Yvonne se encantou com a diversidade de moléculas criadas pela natureza e com a possibilidade de sintetizá-las no laboratório.

Ao terminar o ensino secundário, Yvonne optou por cursar a graduação em Química e, depois de se preparar para o vestibular tentando suprir as lacunas deixadas pela sua formação humanística, ela conseguiu, em 1949, ingressar ao bacharelado em Química da Universidade do Brasil, atual Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Ali, mais uma vez, um docente destacado interveio no desenho de sua trajetória profissional. Tratava-se de Elisário Távora, professor da disciplina de Cristalografia. O professor Távora acabara de retornar dos Estados Unidos, onde tinha feito um doutorado no Massachusetts Institute of Technology (MIT) com orientação do professor Martin Julian Buerger – renomado cristalógrafo, autor de inovações em técnicas e instrumentos da área.  Dessa maneira, Yvonne, por meio de Távora, teve contato com o estado da arte em técnicas de cristalografia, principalmente as baseadas em difração de raios X, e pôde enxergar a potencialidade da área. Na cabeça da jovem Yvonne, ficou a ideia de que estudar a estrutura de moléculas por difração de raios X poderia ser uma boa ideia.

Yvonne sentiu, então, que precisava saber mais Física, e, em 1951, começou a cursar nessa área sua segunda graduação, na atual Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Em 1954, ela possuía os dois diplomas de bacharel e uma sólida bagagem em Físico-Química. No mesmo ano, ela se casou com o também físico-químico Sergio Mascarenhas, com quem formaria, além de uma família, uma dupla protagonista da história da pesquisa em materiais no Brasil.

Na Universidade do Brasil, Yvonne conheceu o professor Joaquim da Costa Ribeiro e participou de trabalhos de pesquisa do cientista. Naquele momento, Costa Ribeiro, que tinha descoberto poucos anos atrás o efeito termodielétrico enquanto estudava materiais naturais brasileiros, era um dos pouquíssimos pesquisadores, junto ao professor Bernhard Gross, que atuava na Física de materiais no Brasil. Nesse momento, de fato, os recursos e esforços de pesquisa no país estavam concentrados na Física nuclear e de altas energias.

Em 1956, depois de quinze anos morando no Rio de Janeiro, Yvonne voltou a morar no interior do estado de São Paulo. Desta vez, ela se instalou em São Carlos, uma cidade de cerca de 40 mil habitantes, junto ao então marido, Sergio Mascarenhas Oliveira, e aos dois primeiros filhos do casal (um menino de colo e uma menina no ventre). O motivo da mudança foi a contratação do casal como professores em tempo integral de uma unidade da Universidade de São Paulo (USP) que tinha sido criada em São Carlos alguns anos atrás, a Escola de Engenharia de São Carlos (EESC).

Se o Rio de Janeiro tinha aberto para Yvonne a possibilidade de uma boa formação, agora São Carlos oferecia a ambos os membros do casal Mascarenhas uma série de benefícios: filiação a uma universidade importante, concentração das atividades de ensino e pesquisa em um mesmo local (no Rio de Janeiro, Sergio trabalhava em quatro locais diferentes) e, não menos relevante, dois salários suficientes para a manutenção da família. Tudo isso, na praticidade de uma cidade pequena, economizando várias horas diárias de deslocamento. Além disso, o casal teria liberdade para desenvolver pesquisa na área que mais lhe interessava naquele contexto: a aplicação da Física e da Química ao estudo e desenvolvimento de materiais.

Na EESC, uma feliz casualidade colocou a professora Yvonne, mais uma vez, na trilha da cristalografia estrutural. Esquecido em um canto, havia um aparelho de raios X médico que tinha sido comprado por um pesquisador francês que passara um tempo na instituição. O aparelho estava sem uso e não tinha utilidade dentro da escola de Engenharia. Então, o professor Sérgio conversou com o fabricante e conseguiu trocá-lo por um instrumento de difração de raios X, o qual foi usado nos primeiros trabalhos experimentais do casal em São Carlos. Nesses trabalhos, ficou claro para a professora Yvonne que conhecer a estrutura dos materiais era essencial para conhecer e modificar suas propriedades.

Entre 1959 e 1960, os Mascarenha passaram 16 meses na cidade de Pittsburgh (Estados Unidos) fazendo estágios de pesquisa com apoio financeiro da Comissão Fulbright, que estava no Brasil desde 1957. Yvonne pretendia fazer um treinamento no estudo da estrutura de materiais por difração de raios X em um grupo do Carnegie Institute of Technology. Porém, ao conhecer o grupo, ela ficou decepcionada. Foi então que, por acaso, ela encontrou o casal de físicos brasileiros Ernesto e Amélia Hamburguer, que estavam na University of Pittsburgh fazendo doutorado e mestrado, respectivamente. Os Hamburguer sugeriram à professora Yvonne que tentasse fazer um estágio no laboratório de Cristalografia coordenado pelo professor George Jeffrey na University of Pittsburgh.

Depois de algumas semanas participando de um curso de Cristalografia ministrado pelo professor Jeffrey, a professora Yvonne começou a trabalhar no grupo de pesquisa, onde, entre outros projetos, realizou o trabalho experimental da sua tese de doutorado, que consistiu em obter a posição dos átomos de um material com propriedades magnéticas, por meio de difração de raios X. Naquele momento, aplicar essa técnica era uma tarefa muito complexa e demorada, devido às limitações dos equipamentos disponíveis, inclusive os computadores. No final do estágio em Pittsburgh, a pesquisadora tinha adquirido habilidades e conhecimentos que a qualificavam para trabalhar com cristalografia de raios X.

Em 1961, quando voltou ao Brasil, Yvonne (que naquele momento era a única cristalógrafa estrutural do Brasil) deu início à criação do Laboratório de Cristalografia de São Carlos (que se tornaria o primeiro laboratório de cristalografia estrutural do país). A implantação da infraestrutura do laboratório e o recrutamento e treinamento de sua equipe multidisciplinar e internacional se intensificaram na década de 1970 e continuaram nos anos posteriores.

Em 1963, depois de processar os resultados experimentais obtidos em Pittsburgh, com bastante dificuldade devido à inexistência de computadores na EESC, Yvonne defendeu sua tese de doutorado intitulada “Determinação de estruturas cristalinas por difração de raios X: estudo do formato manganoso bi-hidratado”.

Em 1971, a professora obteve o título de livre-docente pela EESC. A partir de 1981, tornou-se professora titular do Instituto de Física e Química de São Carlos (IFQSC), mais uma unidade da USP na cidade, fundada em 1971. Quando, em 1994, esta unidade foi dividida nos institutos de Física (IFSC) e de Química (IQSC), a professora Yvonne permaneceu no primeiro até sua aposentadoria compulsória em 2001, quando se tornou pesquisadora colaboradora da instituição. Com a virada do século, Yvonne começou a liderar projetos relacionados ao ensino e difusão de ciências em escolas públicas de nível fundamental e médio.

Ao longo de sua carreira, a professora Yvonne fez estágios científicos como pesquisadora visitante em algumas das instituições mais renomadas do mundo: as universidades de Princeton e Harvard (Estados Unidos), o Instituto Politécnico Nacional do México, e a University of London (Reino Unido).

A professora também desempenhou várias funções de liderança, as quais, ainda hoje, são predominantemente exercidas por homens no meio acadêmico brasileiro. Dentro da USP de São Carlos ocupou chefias de departamento, foi a primeira diretora do Instituto de Física de São Carlos (IFSC) e foi vice coordenadora do polo São Carlos do Instituto de Estudos Avançados (IEA), entre outros cargos. Além disso, a cientista liderou a criação da Sociedade Brasileira de Cristalografia (atual Associação Brasileira de Cristalografia), cuja fundação ocorreu em 1971, e foi presidente da sociedade.

Entre muitas distinções e homenagens recebidas, destacam-se o Distinguished Women in Chemistry or Chemical Engineering Awards da International Union of Pure and Applied Chemistry (2017), o título de Professora Emérita do CNPq (2013), a admissão na Ordem Nacional do Mérito Científico na Classe da Grã-Cruz pela Presidência do Brasil (1998) e a Medalha Simão Mathias da Sociedade Brasileira de Química (1998). Além disso, a pesquisadora é membro titular da Academia Brasileira de Ciências desde 2001.

No decorrer de seis décadas de atuação em cristalografia estrutural, Yvonne Primerano Mascarenhas participou de dezenas de projetos das diversas áreas que precisam de informação estrutural de materiais ou moléculas, interagindo estreitamente com cientistas de materiais, engenheiros, químicos, físicos, biólogos, bioquímicos, médicos etc. No período, 40 trabalhos de mestrado e doutorado foram orientados pela professora, e mais de 180 artigos com a sua coautoria foram publicados em periódicos científicos internacionais. O laboratório criado por Yvonne (atualmente denominado Laboratório Multiusuário de Cristalografia Estrutural) já gerou diretamente mais de 1.000 artigos publicados em periódicos científicos e possibilitou que pesquisadores de muitos estados brasileiros e países da América Latina realizassem medidas de difração de raios X.

Sessenta anos depois dos primeiros trabalhos brasileiros com cristalografia estrutural de raios X, cerca de 200 cristalógrafos estruturais atuam em universidades brasileiras, inclusive a pioneira Yvonne Primerano Mascarenhas que, com seus 87 anos, permanece ativa na pesquisa científica.

Segue uma breve entrevista com esta destacada cientista.

Boletim da SBPMat: – Por meio da cristalografia, você revelou informações essenciais para muitos projetos de pesquisa de diversas áreas. Gostaríamos de saber quais são os trabalhos da área de materiais de mais impacto dos quais você participou.

Yvonne Primerano Mascarenhas:

  • Crystal-stucture analysis of deamino-oxytocin – conformational flexibility and receptor-binding. Por: WOOD, SP; TICKLE, IJ; TREHARNE, AM; et al. SCIENCE Volume: 232 Edição: 4750 Páginas: 633-636 Publicado: MAY 2 1986

Neste trabalho, realizado durante um estágio realizado no Departamento de Cristalografa do Birkbeck College, Universidade de Londres, pudemos contribuir para a elucidação da oxitocina, importante hormônio produzido pela hipófise e que no caso das mulheres exerce importante função nos estágios do parto e da lactação.

  • Characterization of Polyurethane Resins by FTIR, TGA, and XRD. Por: Trovati, Graziella; Ap Sanches, Edgar; Neto, Salvador Claro; et al. JOURNAL OF APPLIED POLYMER SCIENCE Volume: 115 Edição: 1 Páginas: 263-268 Publicado: JAN 5 2010

As medidas realizadas nos difratogramas dos vários tipos de poliuretana permitiram determinar quantitativamente os percentuais de cristalinidade das diferentes amostras e relaciona-las com outros resultados espectroscópicos.

  • Structural transition and pair formation in Fe3O2BO3. Por: Mir, M; Guimaraes, RB; Fernandes, JC; et al. PHYSICAL REVIEW LETTERS Volume: 87 Edição: 14 Número do artigo: 147201 Publicado: OCT 1 2001

A determinação estrutural do material em estudo por difração de raios X a baixa temperatura permitiu caracterizar uma transição de fase cristalográfica que ocorre a baixa temperatura importante para o entendimento das propriedades magnéticas do material em estudo..

  • Crystallographic and spectroscopic characterization of a molecular hinge: Conformational changes in bothropstoxin I, a dimeric Lys49 phospholipase A2 homologue. Por: da Silva Giotto, MT; Garratt, RC; Oliva, G; et al. PROTEINS-STRUCTURE FUNCTION AND BIOINFORMATICS Volume: 30 Edição: 4 Páginas: 442-454 Publicado: MAR 1 1998

A determinação da estrutura molecular dessa enzima que é um dos componentes do veneno da cascavel permitiu entender melhor a sua ação biológica.

  • Crystal structure of perdeuterated violuric acid monohydrate – X ray diffraction analysis. Por: Craven, BM; Mascarenhas, Y. ACTA CRYSTALLOGRAPHICA Volume: 17 Edição: 4 Páginas: 407-& Publicado: 1964

Esta publicação resultou de trabalho realizado na Universidade de Pittsburgh durante o meu primeiro estágio no exterior. A substância em estudo é um barbiturato que cristaliza com uma molécula de água. A determinação estrutural revelou a presença de uma ligação de hidrogênio bifurcada que já havia sido prevista teoricamente mas que foi observada experimentalmente pela primeira vez nesse cristal.

  • Location of cerium and lanthanum cations in CeNaY and LaNaY after calcination. Por: Nery, JG; Mascarenhas, YP; Bonagamba, TJ; et al. ZEOLITES Volume: 18 Edição: 1 Páginas: 44-49 Publicado: JAN 1997

Este é um de uma série de trabalhos que realizamos em colaboração com o centro de pesquisas da Petrobrás (CEMPES) com o objetivo de analisar alterações produzidas em uma série de zeólitas que são empregadas como catalisadores para o craqueamento do petróleo. Os resultados obtidos permitiam entender melhor os mecanismos de catálise e sugerir outras modificações visando a um maior rendimento.

Boletim da SBPMat: – Você proferirá no XVIII B-MRS Meeting a Memorial Lecture Joaquim da Costa Ribeiro. No final do evento, a SBPMat entregará os prêmios do Bernhard Gross Award. Você conheceu pessoalmente estes dois pioneiros da pesquisa em Materiais no Brasil (Costa Ribeiro e Gross). Conte-nos brevemente qual foi sua relação com eles.

Yvonne Primerano Mascarenhas: – Para contar sobre essas pessoas este pequeno parágrafo é muito insuficiente. Costa Ribeiro e Gross foram nossos mentores nas nossas primeiras atividades de pesquisa e de educação científica. Com ambos interagimos durante os nossos anos de graduação na FNFi da então Universidade do Brasil, atual UFRJ. O contato em pesquisa foi sempre presente com Bernhard Gross que visitava São Carlos periodicamente até seu falecimento, orientando nossas atividades tanto experimentais como teóricas e orientando alguns jovens físicos que aderiram ao nosso laboratório. Costa Ribeiro nos apoiou muito desde nossa vinda para São Carlos, tanto com cartas de recomendação ao diretor da EESC como cedendo um eletrômetro Wulf que permitiu imediato início de pesquisas em dielétricos. Mais tarde passou vários anos fora do Brasil como representante do Brasil na Comissão de Energia Atômica em Viena e faleceu prematuramente poucos anos após sua volta ao Brasil.

Boletim da SBPMat: – Você tem quatro filhos que foram criados enquanto você desenvolvia uma importante carreira científica, inclusive ocupando cargos de liderança. Você costuma afirmar que não se sentiu prejudicada em sua vida profissional pelo fato de ser mulher. Poderia nos contar como conseguiu conciliar a vida familiar e a profissional, num momento em que, no Brasil, não existia ainda licença-maternidade e a mulher costumava ser demitida quando se tornava mãe?

Yvonne Primerano Mascarenhas: – Viver em uma cidade pequena permite uma grande convivência familiar, com filhos e outros parentes e amigos. Assim acredito que a decisão de nos mudarmos da cidade do Rio de Janeiro para São Carlos teve um papel muito importante no meu desempenho profissional. Além disso sempre valorizei muito a ajuda que me foi prestada por excelentes pessoas que me apoiavam nas minhas necessidades domésticas e no cuidado com meus filhos. Tive uma imensa sorte em contar com essa inestimável ajuda de várias pessoas que praticamente integravam a minha vida dividindo responsabilidades numa troca interpessoal de muito amor e respeito.

Boletim da SBPMat: – Por favor, deixe uma mensagem para nossos leitores mais jovens que estão iniciando uma carreira de cientistas ou estão cogitando essa possibilidade.

Nunca é demais relembra-los de que a situação econômica e social de nosso país só vai melhorar quando conseguirmos melhorar o nível cultural e científico de nosso povo assim como estabelecer noções de conduta responsável, ética e moral que conduzam ao bom aproveitamento de nossos potenciais recursos naturais (agricultura, reservas minerais e processos industriais e comerciais) e o bom uso dos impostos recolhidos da população. Para tanto é necessário o empenho dos nossos jovens tanto na área educacional como no exercício da cidadania. Sei bem que é uma grande demanda, mas tenho certeza que, com um esforço bem focalizado nessas metas, eles poderão alcançar grandes resultados.

Gente da nossa comunidade: entrevista com o pesquisador Roberto Mendonça Faria.

O entrevistado desta edição do Boletim da Sociedade Brasileira de Pesquisa em Materiais (SBPMat) é o professor Roberto Mendonça Faria, que acaba de entregar a presidência da SBPMat depois de 4 anos de mandato (mas promete permanecer ativo na sociedade).

Roberto Mendonça Faria nasceu em Adamantina, uma pequena cidade localizada no oeste do estado de São Paulo, em maio de 1952. No início dos estudos secundários, já orientado para as Exatas e estimulado por um bom professor de Física, ele começou a olhar a ciência como possível profissão. Em 1976, Faria concluía o bacharelado em Física na Universidade de São Paulo (USP).

No mesmo ano, ainda apaixonado por essa área na qual a humanidade estava dando grandes passos no caminho do conhecimento, Faria iniciou sua carreira acadêmica. Começou a lecionar em cursos de graduação da USP e entrou no curso de mestrado em Física dessa universidade. Ali, orientado pelo professor Bernhard Gross, pioneiro da pesquisa em Materiais no Brasil, aprendeu os pilares da atividade científica e desenvolveu um fascínio por desvendar mistérios dos materiais (no caso a condutividade induzida por radiação no polímero conhecido como Teflon). Logo após a obtenção do diploma de mestre, em 1980, começou o curso de doutorado em Física da USP, mais uma vez contando com o professor Gross como orientador. Em 1984, defendeu sua tese sobre absorção dielétrica e condutividade induzida por radiação no polímero PVDF.

Em 1985 começou a dar aulas em cursos de pós-graduação da USP. Entre 1987 e 1989, permaneceu na França em estágio de pós-doutorado na Université Montpellier 2. Em 1990, obteve o título de livre-docente pela USP, em concurso público, após defender uma tese sobre transições de fase em copolímeros ferroelétricos. Em 1999, tornou-se professor titular do Instituto de Física de São Carlos (IFSC) da USP, onde ocupou diversos cargos de gestão ao longo dos anos, como a chefia do departamento de Física e Ciência dos Materiais (1994-1996), a coordenação do programa de pós-graduação em Física (1997-1998) e a direção geral do IFSC (2002 – 2006).

Roberto Faria também foi coordenador de dois projetos de grande porte em nível nacional. O primeiro foi o Instituto Multidisciplinar de Materiais Poliméricos do Milênio, um dos 17 projetos selecionados dentro do Programa Institutos do Milênio do Ministério da Ciência e Tecnologia (MCT). Esse instituto reuniu cerca de 140 pesquisadores de 17 instituições das cinco regiões do país e vigorou entre 2002 e 2008. O segundo projeto deu continuidade a um dos focos de pesquisa do primeiro, o estudo dos polímeros eletrônicos e suas aplicações. Iniciado em 2009, o Instituto Nacional de Eletrônica Orgânica foi aprovado e estabelecido no contexto do programa Institutos Nacionais de Ciência e Tecnologia (INCTs) do MCT.

Indo além das fronteiras da sua área de atuação científica, Faria foi coordenador, entre 2010 e 2014, do polo de São Carlos do Instituto de Estudos Avançados (IEA) da USP, órgão destinado à pesquisa e discussão abrangente e interdisciplinar de questões fundamentais da ciência e da cultura. Além disso, no contexto de seu interesse em contribuir com o desenvolvimento econômico do país por meio da pesquisa, coordenou a realização do livro “Ciência, Tecnologia e Inovação para um Brasil competitivo”, publicado em 2012.

Nos últimos anos, Faria tem tido ativa participação em entidades científicas internacionais da área de Materiais. Em 2014, foi um dos coordenadores gerais do evento “Spring Meeting of the European Material Research Society – 2014“, realizado na cidade francesa de Lille. Em 2015, foi eleito segundo vice-presidente da International Union of Materials Research Societies(IUMRS).

Faria é membro da Academia de Ciência do Estado de São Paulo e da Academia Brasileira de Ciências, e pertence ao conselho editorial da revista “Materials Science – Poland”. Em 40 anos de pesquisa científica em materiais poliméricos, particularmente aqueles com atividade eletrônica e suas aplicações em dispositivos, o professor Faria produziu cerca de 180 artigos publicados em periódicos indexados, contando com cerca de 2.000 citações, e orientou 47 dissertações de mestrado e teses de doutorado.

Segue uma entrevista com o pesquisador.

Boletim da SBPMat: – Conte-nos o que o levou a se tornar um cientista e a trabalhar na área de Materiais.

Roberto Mendonça Faria: – Antes do de cursar o Científico, atual Ensino Médio, imaginava seguir a área das Exatas (como na época eram chamadas as Engenharias, a Física, a Química, a Matemática, etc.), porém não tinha nenhuma pretensão de fazer uma carreira científica, muito menos de ser um cientista. Contudo, já no primeiro ano do Científico comecei a mudar de ideia, estimulado por um excelente professor de Física, Roberto Stark. Formei-me em Física e logo tive a sorte de ter sido guiado por dois grandes mestres: o professor Bernhard Gross e o professor Guilherme Fontes Leal Ferreira. Como todo recém-formado em física da minha época, eu era apaixonado pelos extraordinários avanços experimentais e teóricos da física do século XX. Porém, meu primeiro trabalho de investigação foi sobre um tema aparentemente modesto: a interação da radiação ionizante com filmes finos de polímeros isolantes. Sob a orientação do professor Gross aprendi definitivamente como abordar um problema científico e também a manejar o rigor metodológico necessário para desvendar os efeitos e fenômenos que surgiam dos experimentos realizados. Esses primeiros anos de pesquisa foram de crucial importância para minha carreira. Nunca mais perdi o fascínio em desvendar as propriedades e os enigmas da matéria condensada, e fico feliz porque a Ciência e a Engenharia dos Materiais é de muita importância para o desenvolvimento do Brasil.

Boletim da SBPMat: – Quais são, na sua própria avaliação, as suas principais contribuições à área de Materiais?

Roberto Mendonça Faria: – Há diferentes maneiras de se medir as contribuições ao avanço do conhecimento científico e tecnológico. A visão mais objetiva e mais seguida internacionalmente é a bibliométrica conduzida pelo Journal of Citation Reports (JCR) da Thomson Reuters. Essa métrica tem muitos méritos, mas é exageradamente numerológica. Outro fato que pesa nas avaliações científicas vem do pragmatismo do mundo atual. Hoje exige-se que os trabalhos científicos estejam voltados a aplicações específicas. Nesse contexto, as pesquisas que envolvem estudos mais fundamentais tendem a perder a visibilidade que merecem. Ou seja, trabalhos científicos de grande valor muitas vezes são pouco citados. Uma análise da minha produção a partir da JCR pode levar à conclusão de que minhas contribuições mais relevantes estão ligadas a aplicações, mas eu particularmente acho que as minhas maiores contribuições estão mais relacionadas a trabalhos fundamentais nas áreas de transição de fase de polímeros ferroelétricos e de mecanismos de transporte elétricos em polímeros eletrônicos.

Uma das áreas interessantes que tenho trabalhado nos últimos anos é a de células solares orgânicas. Junto com meu grupo de pesquisa, creio que demos uma contribuição significativa à compreensão de fenômenos envolvendo o transporte de portadores elétricos no interior da célula. Publicamos dois trabalhos de 2013 para cá nos quais desenvolvemos uma equação analítica que governa a curva de corrente elétrica em função da voltagem de uma célula solar quando sob iluminação. Essa equação analítica vale muito bem em casos especiais, e explicou muitos dos efeitos optoeletrônicos dos dispositivos que construímos e medimos em nossos laboratórios. Um dos trabalhos foi publicado na revista Applied Physics Letters, em 2013, e o outro na Solar Energy Materials and Solar Cells, em 2015.

Por outro lado, sempre me dediquei a montar laboratórios de pesquisa e a formar recursos humanos. Venho também contribuindo com vários programas de pós-graduação, direta e indiretamente, e tenho me dedicado há mais de vinte anos ao fortalecimento da área de Eletrônica Orgânica no país, sobretudo na formação de uma rede de pesquisa nessa área: o Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia de Eletrônica Orgânica. Procuro sempre que possível incentivar projetos de parcerias com a iniciativa privada e com institutos de pesquisa que visam projetos aplicados. Na área de políticas públicas creio que minha participação maior foi a de coordenar o documento da CAPES com a SBPC, denominado “Ciência, Tecnologia e Inovação para um Brasil Competitivo” que contribuiu à criação da Empresa Brasileira de Pesquisa e Inovação Industrial (EMBRAPII).

Boletim da SBPMat: – Você acaba de concluir seu mandato como presidente da SBPMat, função que exerceu durante 4 anos. Compartilhe com nossos leitores uma análise dos resultados conseguidos pelas diretorias que você presidiu.

Roberto Mendonça Faria: – A SBPMat é uma sociedade relativamente nova, mas tem uma missão importante a realizar em prol do desenvolvimento do país. O Brasil dispõe de uma riqueza extraordinária que a ele é oferecida pela natureza. Porém, o país pouco se aproveita dessa riqueza porque coloca pouco conhecimento sobre seus recursos naturais. Houve uma revolução na agricultura depois que o país resolveu colocar conhecimento sobre essa dádiva que a natureza lhe ofereceu. Hoje o agronegócio é um dos pilares, talvez o mais forte, da nossa economia. Temos que fazer o mesmo com as matérias-primas que abundam em nosso território. A publicação “Science Impact – A special report on materials science in Brazil”, em parceria com o Institute of Physics (IOP) , foi um dos projetos que deu certo e que me gratificou muito. Esse tipo de iniciativa ajuda a criar consciência de que o Brasil tem vocação natural para ser líder em vários segmentos relacionados a Materiais, e gerar muito mais riqueza do que gera atualmente.

Outra valiosa contribuição que as duas gestões anteriores da SBPMat deram à Ciência e Engenharia de Materiais no Brasil foi a consolidação e internacionalização definitiva do encontro anual, que sempre é realizado no final de setembro.

Não posso deixar de destacar que a criação do Boletim Eletrônico bilíngue foi uma realização que deu certo, principalmente pela competência com que vem sendo produzido.

Boletim da SBPMat: – Você acaba de assumir, por dois anos, a segunda vice-presidência da IUMRS. Comente seus planos, expectativas…

Roberto Mendonça Faria: – Estou iniciando essa atividade. Meus planos são, em primeiro lugar, inserir cada vez mais a Ciência dos Materiais brasileira no cenário internacional. Ao mesmo tempo, pretendo usar o apoio da IUMRS para estimular a pesquisa de materiais em outros países da América Latina. O Brasil e a América Latina têm muitos problemas que são oriundos de suas economias ainda deficientes. Tenho convicção de que pesquisas em áreas de materiais são instrumentos valiosos para melhorar as condições de vida dessas populações. Hoje, como membro do Conselho da SBPMat, quero, com o auxílio da IUMRS, levar essa discussão não só no Brasil, mas em vários países da América Latina.

Boletim da SBPMat: – Deixe uma mensagem para os leitores que estão iniciando suas carreiras científicas.

Roberto Mendonça Faria: Deixei para registrar aqui que uma das realizações (ainda em andamento) que traz orgulho à nossa gestão foi a criação do programa University Chapters . Vou pedir ao Conselho que me permita trabalhar em conjunto com o professor Rodrigo F. Bianchi dentro desse programa. Não tenho dúvidas de que quanto mais pesquisadores formarmos, mais o Brasil ganhará com isso.

Acredito que o trabalho junto aos jovens que estão iniciando a atividade científica é um dos mais valiosos para um pesquisador sênior. Temos o dever de mostrar aos jovens o quanto é importante para o país o trabalho de “fabricar conhecimento”, sobretudo nas áreas científicas e tecnológicas. Não há ainda um só exemplo de país que tenha erradicado a pobreza sem que tenha desenvolvido uma educação forte e uma ciência e tecnologia competitiva. Portanto, fica aos jovens a mensagem de acreditarem no seu trabalho e de procurar sempre realizá-lo da forma mais competente possível.