Artigo em destaque: Linha de algodão condutora para costurar eletrônicos vestíveis.

O artigo científico de autoria de membros da comunidade brasileira de pesquisa em Materiais em destaque neste mês é: Multifunctional Wearable Electronic Textiles Using Cotton Fibers with Polypyrrole and Carbon Nanotubes. Ravi M. A. P. Lima, Jose Jarib Alcaraz-Espinoza , Fernando A. G. da Silva, Jr., and Helinando P. de Oliveira. ACS Appl. Mater. Interfaces, 2018, 10 (16), pp 13783–13795. DOI: 10.1021/acsami.8b04695

Linha de algodão condutora para costurar eletrônicos vestíveis

Esta imagem de microscopia eletrônica de varredura (MEV) amplifica uma das “linhas eletrônicas” desenvolvidas neste trabalho, composta por algodão revestido com nanotubos de carbono e com polipirrol obtido por polimerização interfacial.
Esta imagem de microscopia eletrônica de varredura (MEV) amplifica uma das linhas condutoras desenvolvidas neste trabalho.

A “velha conhecida” linha de costura, universalmente usada, por exemplo, para pregar botões, foi recentemente transformada por uma equipe científica brasileira em um material condutor de eletricidade e multifuncional. De fato, os usos desta nova linha de costurar vão muito além da costura. Ela funciona muito bem como mini aquecedor elétrico, como componente de supercapacitores (dispositivos que armazenam e liberam energia, similares às baterias) e como agente bactericida. Além disso, a linha é flexível e confortável ao toque, e conserva suas propriedades eletrônicas mesmo depois de lavada, torcida, enrolada ou dobrada repetidas vezes.

Com essas características, a fibra pode cumprir um papel importante na eletrônica vestível –  o conjunto de dispositivos eletrônicos planejados para serem usados sobre o corpo humano, incorporados a roupas ou acessórios.

“Como a linha é um elemento básico para a concepção de têxteis, imaginamos que qualquer produto vestível possa fazer uso desta tecnologia”, diz Helinando Pequeno de Oliveira, professor da Universidade Federal do Vale de São Francisco (Univasf) e líder da equipe científica que desenvolveu a linha condutora e bactericida. Junto a outros três autores, todos ligados à Univasf, Oliveira assina um artigo sobre o assunto, que foi recentemente publicado no periódico científico ACS Applied Materials and Interfaces (fator de impacto= 7,504).

A fibra condutora e bactericida de Oliveira e seus colaboradores é feita de um material compósito, formado por linhas de algodão de 0,5 mm de diâmetro, revestidas com nanotubos de carbono e polipirrol. O material resultante apresenta, além de alta condutividade elétrica, boa atividade eletroquímica – característica necessária para que possa ser usado em supercapacitores.

Para fabricar a fibra condutora, a equipe da Univasf desenvolveu um processo bastante simples, formado por duas etapas principais. Na primeira etapa, pedaços de linha de algodão são submergidos em uma tinta de nanotubos de carbono quimicamente modificados de modo a aumentar sua interação com o algodão. Como resultado, a linha fica revestida por uma rede contínua de nanotubos interconectados.

A segunda etapa é destinada a revestir as fibras com um segundo material: o polipirrol. Para isso, inicialmente, prepara-se uma solução formada pelo composto pirrol e o solvente hexano, na qual se submergem as fibras revestidas com nanotubos. Em seguida, verte-se, em cima desta preparação, uma outra solução, formada por água e alguns compostos que acabarão se incorporando em quantidades muito pequenas à composição química do polipirrol num processo chamado “dopagem” do material. Na interface entre ambas as soluções, as quais não se misturam, ocorre então a união das pequenas moléculas de pirrol, resultando na formação de macromoléculas de polipirrol que se depositam na superfície das fibras. Este processo, no qual um polímero se forma na interface entre duas soluções, é chamado de “polimerização interfacial”. “Dado o bom nível de dopagem do polipirrol (otimizado para esta síntese) e a sua forte interação com os nanotubos funcionalizados, as fibras resultantes apresentam ótimas propriedades elétricas”, diz o professor Oliveira.

A equipe científica também produziu algumas variantes dessa linha de costurar condutora. Por exemplo, uma fibra sem nanotubos de carbono e outra fibra cujo revestimento de polipirrol foi produzido por meio de uma polimerização não interfacial. Entretanto, as linhas com nanotubos de carbono e polimerização interfacial mostraram o melhor desempenho elétrico e eletroquímico.

Aquecedores e supercapacitores em fibras de algodão

Primeira e segunda geração de protótipos do supercapacitor baseado nas linhas de costurar condutoras.
Primeira e segunda geração de protótipos do supercapacitor baseado nas linhas de costurar condutoras.

“A alta condutividade elétrica (em conjunto com a boa porosidade do material) fez do material um ótimo protótipo para aplicação em eletrodos de supercapacitores”, diz Oliveira. “Estas propriedades também viabilizaram o seu uso como aquecedor elétrico com tensões de operação bem baixas (da ordem de poucos volts). Junto a estas aplicações, se soma o potencial antibacteriano da matriz”, completa.

Além de testarem o desempenho da fibra condutora e bactericida de forma isolada no laboratório, Oliveira e seus colaboradores desenvolveram uma prova de conceito. “Usamos uma agulha para costurar a linha em uma luva”, conta o professor. “Com isso poderíamos monitorar a temperatura que a mão, vestindo esta luva, atingiria quando conectássemos o dispositivo a uma fonte de alimentação”, explica.

O sistema de aquecimento testado na luva pode ser adaptado a diversos contextos, como por exemplo uma versão ambulatória da termoterapia (aquecimento terapêutico de regiões do corpo, que é frequentemente utilizado em sessões de fisioterapia), com a vantagem adicional da ação antibacteriana. Essa propriedade é particularmente interessante em materiais que são usados em contato com a pele, já que, dessa maneira, evitam doenças e odores. No caso do polipirrol, a ação ocorre quando o material atrai eletrostaticamente as bactérias e promove o rompimento de sua parede celular, inibindo a sua proliferação.

Aquecimento local (em graus centígrados) proporcionado pela linha condutora costurada ao dedo indicador da luva, depois de aplicar uma tensão elétrica de 12 V.
Aquecimento local (em graus centígrados) proporcionado pela linha condutora costurada ao dedo indicador da luva, depois de aplicar uma tensão elétrica de 12 V.

Um possível produto vestível baseado na linha de costurar condutora é um casaco térmico. Ele poderia ser alimentado por meio de uma célula solar incorporada ao casaco, ou por meio de dispositivos triboelétricos, que colheriam a energia gerada pelo movimento do usuário do casaco. A energia resultante seria armazenada em um supercapacitor feito com a fibra condutora. Costurado ao casaco, o supercapacitor forneceria eletricidade ao aquecedor quando necessário.

Mais um exemplo é o da camiseta armazenadora de energia, na qual o grupo do professor Oliveira está trabalhando atualmente com o objetivo de gerar um produto comercializável. “No momento estamos otimizando a confecção de supercapacitores em peças de tecidos à base de algodão e lycra, como forma a conectá-los diretamente a geradores de energia portáteis, viabilizando assim o desenvolvimento de camisetas armazenadoras de energia”, revela Oliveira.

Ciência e tecnologia desenvolvida no sertão nordestino

O trabalho reportado no artigo da ACS Appl. Mater. Interfaces e seus desdobramentos foram totalmente realizados no Instituto de Pesquisa em Ciência dos Materiais da Univasf, no campus do município de Juazeiro, localizado ao norte do estado da Bahia.  A Univasf, que possui seis campi distribuídos no interior dos estados da Bahia, Pernambuco e Piauí, foi criada em 2002 e inaugurada em 2004. No mesmo ano, Oliveira tornou-se professor da instituição.

O desenvolvimento das linhas de algodão condutoras nasceu de uma linha de pesquisa sobre eletrônicos e dispositivos flexíveis, criada em 2016. Em 2017, a ideia virou tema do trabalho de mestrado de Ravi Moreno Araujo Pinheiro Lima, com orientação do professor Helinando Oliveira, dentro do Programa de Pós-Graduação em Ciência dos Materiais na Univasf – Juazeiro, criado em 2007. O pós-doc José Jarib Alcaraz Espinoza, que estava otimizando sínteses de polímeros condutores para supercapacitores, adaptou uma metodologia à polimerização interfacial em algodão. Com isso, os pesquisadores perceberam que as linhas condutoras funcionavam como bons eletrodos de supercapacitores, e fabricaram esses dispositivos. Ao mesmo tempo, com a colaboração de Fernando da Silva Junior, doutorando do programa de pós-graduação institucional Rede Nordeste de Biotecnologia, a equipe testou a ação do material contra a bactéria Staphylococcus aureus, responsável por uma série de infecções de diversos graus de gravidade no ser humano.

“Estes resultados refletem o investimento do Brasil na interiorização de sua rede de instituições federais de ensino e pesquisa. Com isso, a migração do sertanejo rumo às grandes capitais na busca por conhecimento vem sendo reduzida. Agora há também mais ciência sendo produzida no sertão nordestino”, afirma o professor Oliveira. “No entanto, os recentes cortes em C&T têm lançado uma enorme nuvem de incerteza sobre o futuro da ciência no país (e em particular sobre estas jovens instituições). O governo brasileiro não tem o direito de jogar tantos sonhos no lixo. A ciência precisa superar mais esta crise”, completa o pesquisador.

Foto do grupo de pesquisa liderado pelo professor Oliveira no Instituto de Pesquisa em Ciência de Materiais. À direita, em azul, os autores do artigo.
Foto do grupo de pesquisa liderado pelo professor Oliveira no Instituto de Pesquisa em Ciência de Materiais. À direita, em azul, os autores do artigo.

Artigo em destaque: Material avançado para supercapacitores supercapazes.

O artigo científico com participação de membros da comunidade brasileira de pesquisa em Materiais em destaque neste mês é: One-step electrodeposited 3D-ternary composite of zirconia nanoparticles, rGO and polypyrrole with enhanced supercapacitor performance. Alves, Ana Paula P.; Koizumi, Ryota; Samanta, Atanu; Machado, Leonardo D.; Singh, Abhisek K.; Galvao, Douglas S.; Silva, Glaura G.; Tiwary, Chandra S.; Ajayan, Pulickel M. NANO ENERGY, volume 31, January 2017, 225–232. DOI: 10.1016/j.nanoen.2016.11.018.

Material avançado para supercapacitores supercapazes

Supercapacitores são dispositivos de estocagem de eletricidade que apresentam a útil particularidade de liberarem grandes quantidades de energia em curtos intervalos de tempo. Já são usados, por exemplo, em veículos elétricos ou híbridos, flashes de câmeras fotográficas e elevadores, mas ainda podem ser aperfeiçoados – em grande parte, com a contribuição da Ciência e Tecnologia de Materiais – para as aplicações atuais e potenciais. Em um esquema bem simplificado, um supercapacitor é formado por dois eletrodos, o positivo e o negativo, separados por uma substância contendo íons positivos e negativos (o eletrólito).

Um artigo recentemente publicado no periódico científico Nano Energy (fator de impacto 11,553) apresenta uma contribuição de uma equipe científica internacional e interdisciplinar ao desenvolvimento de materiais que melhoram o desempenho de supercapacitores. Mediante um processo simples e facilmente escalável, o time de pesquisadores do Brasil, Estados Unidos e Índia fabricou eletrodos de um material compósito formado por polipirrol (PPi), óxido de grafeno reduzido (rGO) e nanopartículas de óxido de zircônio (ZrO2). Ao combinarem os três materiais, os cientistas conseguiram gerar um eletrodo com grande área superficial e alta porosidade – características fundamentais para promover a interação dos íons do eletrólito com a superfície dos eletrodos e, dessa maneira, potencializar o desempenho do supercapacitor.

“Nossa contribuição diferenciada foi a síntese, em uma única e simples etapa de eletrodeposição, de um híbrido contendo grafeno, óxido de zircônio e polipirrol e a demonstração experimental de ganhos consideráveis em propriedades eletroquímicas, em paralelo à modelagem teórica visando obter uma compreensão do papel dos componentes do material”, diz Glaura Goulart Silva, professora do departamento de Química da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e autora correspondente do artigo.

Além de preparar amostras do compósito ternário (ou seja, formado por três elementos) PPi/rGO/ZrO2, a equipe fabricou, usando o mesmo método e para fins de comparação, amostras do compósito binário PPi/rGO, e amostras de polipirrol puro. Os três materiais foram analisados usando as técnicas de XPS (espectroscopia de fotoelétrons excitados por raios X), MEV (microscopia eletrônica de varredura), espectroscopia Raman e microscopia eletrônica de transmissão, para determinar sua composição, estrutura e morfologia.

Como pode ser observado nas imagens de MEV da figura abaixo, os cientistas notaram que a adição de óxido de grafeno e nanopartículas de zircônia mudara significativamente a morfologia do material. Enquanto o polipirrol puro tinha formado um filme trincado e com aspecto de aramado, o compósito com grafeno possuía uma morfologia granulosa e sem fendas, e o material com óxido de zircônio se apresentava com aspecto semelhante ao de folhas.

Finalizando a parte experimental do estudo, os cientistas realizaram uma série de testes para medir o desempenho dos três materiais enquanto supercapacitores. Os resultados mostraram que a capacidade de armazenar cargas elétricas (capacitância) tinha aumentado até 100% no compósito ternário com relação ao polipirrol. Além disso, esse desempenho, em vez de diminuir devido ao uso do eletrodo, aumentara 5% depois de 1.000 recargas nos compósitos binário e ternário.

O artigo foi o primeiro a apresentar a introdução de nanopartículas de óxido de zircônio em eletrodos de polipirrol e grafeno para supercapacitores. Assim, a equipe realizou modelagens computacionais para analisar o papel do óxido de zircônio no desempenho do compósito. As simulações confirmaram os efeitos benéficos das nanopartículas na estabilidade do material, diretamente relacionada ao alongamento da vida útil dos eletrodos.

Esquema ilustrativo de armazenamento de carga e interação dos íons próximos à superfície dos eletrodos de polipirrol puro (PPi), con óxido de grafeno reduzido (PPi/rGO) e polipirrol, PPi/rGO/ZrO2 (acima), baseado na morfologia associada às imagens de MEV da superfície dos eletrodos com os respectivos materiais sob substrato de fibra de carbono (abaixo). Imagem feita por Ana Paula Pereira Alves para sua tese de doutorado.
Esquema ilustrativo de armazenamento de carga e interação dos íons próximos à superfície dos eletrodos de polipirrol puro (PPi), con óxido de grafeno reduzido (PPi/rGO) e polipirrol, PPi/rGO/ZrO2 (acima), baseado na morfologia associada às imagens de MEV da superfície dos eletrodos com os respectivos materiais sob substrato de fibra de carbono (abaixo). Imagem feita por Ana Paula Pereira Alves para sua tese de doutorado.

 

“O potencial destes novos compósitos para uso em supercapacitores é muito grande devido às necessidades de aumento da densidade de energia fornecida pelo dispositivo, em paralelo à sua miniaturização”, afirma a professora Goulart Silva. “A alternativa desenvolvida no trabalho em questão permite um melhor desempenho em termos de estabilidade à ciclagem com ganhos na direção da segurança do supercapacitor. O uso de supercapacitores e baterias nos carros elétricos e híbridos é uma das frentes tecnológicas onde estes materiais podem encontrar aplicação”, completa.

A partir da esquerda do leitor: a professora Glaura Goulart Silva (UFMG), o professor Pulickel Ajayan (Rice University) e Ana Paula Pereira Alves, doutora recém- diplomada pela UFMG.
A partir da esquerda do leitor: a professora Glaura Goulart Silva (UFMG), o professor Pulickel Ajayan (Rice University) e Ana Paula Pereira Alves, doutora recém- diplomada pela UFMG.

O trabalho faz parte do doutorado em Química de Ana Paula Pereira Alves, realizado com orientação da professora Goulart Silva e defendido em fevereiro deste ano na UFMG com uma tese sobre síntese e caracterização de materiais avançados para supercapacitores. Na universidade mineira, Pereira Alves realizou, no doutorado, um treinamento intensivo em técnicas de síntese e análise físico-química de polímeros conjugados e de grafenos e em caracterização de supercapacitores. Em 2015, ela partiu para os Estados Unidos para realizar um estágio “sanduíche” de um ano, com apoio do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), no departamento de Ciência dos Materiais e Nanoengenharia da Rice University, no grupo de pesquisa do professor Pulickel Ajayan (pesquisador com índice h=139 segundo o Google Scholar), que é colaborador do grupo da professora Goulart Silva desde 2010. “O professor Ajayan tem sistematicamente proposto inovações radicais em sínteses e design de baterias e supercapacitores, com grande impacto internacional na área”, comenta ela.

O trabalho experimental reportado no artigo foi realizado na Rice University, com a presença de todos os autores, inclusive os oriundos do Brasil e da Índia, sem omitir a própria professora Goulart Silva, que passou ali o mês de fevereiro de 2016 com apoio da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de Minas Gerais (Fapemig). “O ambiente altamente interdisciplinar do Department of Materials Science and NanoEngineering da Rice permitiu que engenheiros, físicos e químicos se reunissem para trabalhar em um problema de grande importância na atualidade”.

A modelagem computacional foi realizada por pesquisadores da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN) – entre eles, o professor Douglas Galvão (Unicamp), que mantinha uma colaboração científica com o professor Ajayan desde antes do início desta pesquisa.

“Em minha opinião este trabalho é um excelente exemplo de sucesso, onde a competência dos grupos brasileiros se uniu à de um grupo altamente produtivo e impactante no cenário internacional e se complementaram”, diz Goulart Silva. “A estabilidade e ampliação dos investimentos em pesquisa e desenvolvimento no Brasil são essenciais para que exemplos de trabalhos como esse sejam corriqueiros. Pesquisa é um investimento que precisa ser feito a longo termo, sem retrocessos, para assim permitir uma alta taxa de retorno em termos de materiais, tecnologias e pessoas altamente qualificadas. Ana Paula Alves é agora uma jovem doutora em busca de oportunidade para construir seu grupo de pesquisa e assim formar novos estudantes e contribuir para enfrentar os desafios do nosso país”, completa a professora da UFMG.