Gente da comunidade: entrevista com o cientista argentino Galo Soler Illia.

Galo Soler Illia.
Galo Soler Illia.

Quantas vocações científicas despertaram, e quantos acidentes domésticos provocaram, os jogos infantis de química experimental, que, até um tempo atrás, não seguiam todas as normas de segurança para brinquedos, hoje obrigatórias? O cientista argentino Galo Juan de Ávila Arturo Soler Illia pertence a esse grupo. Ele conta que seu interesse pela ciência se acendeu (literalmente) com um pequeno incêndio provocado por um jogo de laboratório de Química na casa de seus pais –  dois advogados, militantes da Unión Cívica Radical. Esse era o partido, aliás, do avô de Galo Soler Illia, o Presidente Arturo Umberto Illia, que governou a Argentina de 1963 a 1966, até sofrer um golpe de Estado.

Hoje, Galo Soler Illia pode ser considerado um dos pesquisadores mais conhecidos do país vizinho, tanto na comunidade científica (consta entre os 30 cientistas argentinos melhor posicionados no Google Scholar pelas citações a trabalhos de sua autoria, e já recebeu os principais prêmios nacionais de ciência) quanto entre o público leigo (no campo da Nanotecnologia, ele é um divulgador muito ativo e didático presente em todas as mídias, e costuma ser fonte de informações para os jornalistas argentinos).

Galo Soler Illia nasceu em Buenos Aires em 31 de maio de 1970. Fez seus estudos primários numa escola particular construtivista, o Colegio Bayard. Para cursar os estudos secundários ingressou, em 1983, ao Colegio Nacional de Buenos Aires, instituição pública dependente da Universidad de Buenos Aires (UBA), caracterizada, entre outras coisas, pela alta exigência nos estudos, a riqueza das atividades extracurriculares e uma infraestrutura superior à das outras escolas públicas. Em 1988, formou-se pelo colégio com uma especialização em Ciências. Tanto no ensino primário quanto no secundário teve oportunidade de fazer atividades em laboratórios de ciência.

Entre 1989, Soler Illia começou a cursar a graduação em Ciências Químicas na UBA. Durante a graduação, começou a lecionar no Departamento de Química Inorgânica, Analítica e Química Física da UBA e a fazer pesquisa em um grupo de Química de Materiais e também em um laboratório montado na casa de um amigo. Em 1993, ele obteve o diploma de licenciado em Química, tendo uma média nas avaliações das disciplinas de 9,13/ 10. Na Argentina, a licenciatura habilita o diplomado a realizar todo tipo de atividade profissional na área de formação, inclusive docência e atividades de pesquisa, e o prepara para um ingresso a um curso de doutorado sem passar pelo mestrado.

De 1994 a 1998, Soler Illia realizou o doutorado em Química, também na UBA, sob orientação do doutor em Química Miguel Angel Blesa. Através da pesquisa sobre nanopartículas de hidróxidos metálicos mistos, ele gerou conhecimento sobre o complexo mecanismo de formação de partículas, o qual lhe seria muito útil nas pesquisas que realizou como pós-doc e como pesquisador profissional, voltadas à síntese de materiais com alto controle de suas características. Concomitantemente ao doutorado, continuou lecionando, como assistente, na UBA.

Em 1999, foi morar na França, junto a sua esposa, a também química Astrid Grotewold, e permaneceram no país galo até o ano de 2002. Soler Illia fez um pós-doutorado na Université Pierre et Marie Curie (Paris), com supervisão do doutor Clément Sanchez, contando com uma bolsa com duração de 2 anos do CONICET, principal entidade argentina de apoio à ciência e tecnologia. No pós-doc, o argentino desenvolveu métodos para produzir materiais com porosidade altamente controlada. Desse período, resultaram os artigos de Soler Illia mais citados até o momento, com mais de 1.800 citações em um dos papers, segundo o Google Scholar. No final do período francês, Soler Illia também trabalhou em aplicações de filmes finos mesoporosos para o centro de pesquisa e desenvolvimento da empresa Saint Gobain.

Galo Soler Illia voltou à Argentina no início de 2003, num período em que o país saía de uma enorme instabilidade política que provocou a passagem de 5 pessoas diferentes pela Presidência da República em apenas 11 dias. Além disso, o país ainda estava sob os efeitos da grave crise econômica que tivera seu ápice em 2001. Entretanto, rapidamente, Soler Illia conseguiu ingressar à carreira de pesquisador do CONICET trabalhando na Comisión Nacional de Energia Atómica (CNEA) e, sem perder tempo, fundou o Grupo Química de Nanomateriales, que, até hoje, atua no projeto e obtenção de materiais nanoestruturados. Em 2004, o cientista se tornou, por concurso, professor da UBA, do departamento em que fizera seus estudos de grado e doutorado.

No início de 2015, Soler Illia se tornou diretor do Instituto de Nanosistemas (INS) da Universidad Nacional de San Martín, localizada na área metropolitana de Buenos Aires. O INS se define como um espaço de pesquisa, desenvolvimento e criação interdisciplinar em nanociência e nanotecnologia, cujo objetivo final é resolver problemas prioritários da indústria e da sociedade em geral. No instituto, Soler Illia conta com uma equipe científica multidisciplinar de 4 pesquisadores (mais 4 em 2017), 6 estudantes de pós-graduação e pós-docs e 1 técnico de laboratório, além de uma equipe de gestão formada por 6 profissionais.

Atualmente, além de diretor do INS, Galo Soler Illia é pesquisador principal do CONICET e professor associado da UBA. É membro de conselhos assessores na Fundación Argentina de Nanotecnología (FAN) e no Laboratório Nacional de Luz Síncrotron (Brasil), e membro do conselho editorial do Journal of Sol-Gel Science and Technology (Springer). Além disso, o cientista tem uma coluna de divulgação científica sobre Nanotecnologia no programa televisivo “Científicos Industria Argentina”, que vai ao ar uma vez por semana no canal público argentino. Finalmente, Soler Illia acaba de ser nomeado, neste mês de novembro, membro do Conselho Presidencial Argentina 2030, integrado por intelectuais de diversos campos para assessorar o presidente da Argentina, Mauricio Macri.

Soler Illia, cujo índice h é de 44, possui uma produção de mais de 120 artigos publicados em periódicos científicos internacionais, com cerca de 11 mil citações, segundo o Google Scholar. Já orientou 7 teses de doutorado concluídas e é autor de 2 livros de divulgação sobre nanotecnologia. Também é autor de 4 pedidos de patentes.

Seu trabalho foi reconhecido com uma série de prêmios à ciência, tecnologia, inovação e divulgação científica, entre eles os principais da Argentina, como o Prêmio Houssay 2006 e 2009, da secretaria e depois ministério de ciência e tecnologia argentino; o Prêmio KONEX 2013, da fundação homônima, e o Premio Innovar 2011 e 2016, do Ministerio de Ciencia, Tecnología e Innovação Productiva. Também recebeu distinções da Academia Nacional de Ciencias Exactas, da FAN, da Asociación Argentina de Investigacão Fisicoquímica, do CONICET, das empresa BGH e Dupont, entre outras entidades. Em maio deste ano, Galo Soler Illia foi designado acadêmico titular da Academia Nacional de Ciencias Exactas, Físicas y Naturales, passando a compor um seleto grupo de apenas 36 cientistas.

Segue uma entrevista com o cientista argentino.

Boletim da SBPMat: – Conte-nos o que o levou a se tornar um cientista e a trabalhar no campo dos materiais.

Galo Soler Illia: – Sempre gostei de Química. Comecei com 5 anos, quando ganhei um jogo de Química e, fazendo um experimento, queimei a mesa de jantar da casa dos meus país. Depois, em meus estudos de nível secundário fui um pouco “nerd”, dedicando-me a escrever software para as aulas de Física do meu colégio. Escrever código despertou em mim uma curiosidade por saber como funcionavam as coisas e como os problemas podiam ser resolvidos. Aprendi muitíssimo. Perto do final do ensino secundário, decidi estudar Química, pois achei que era um curso muito versátil e maravilhoso que tinha grandes possibilidades em muitos campos. Nessa época, eu estava muito interessado na Biotecnologia, que era uma área nova. Mas na época em que comecei meus estudos de graduação na Universidade de Buenos Aires (UBA), a área de Química de Materiais começava a surgir. Ainda aluno, comecei a lecionar como ajudante no Departamento de Química Inorgânica, Analítica e Química Física da Faculdade de Ciências Exatas e Naturais, inspirado pelo exemplo de professores jovens e entusiastas que estavam voltando do exterior e geravam uma atmosfera de trabalho e exigência. Junto a meus melhores amigos, instalamos um laboratório em um quarto no terraço da casa de um deles. Ali crescíamos cristais e planejávamos síntese de moléculas. Como passávamos o dia todo na universidade e tínhamos algum tempo libre, eu achei um lugar para trabalhar, sem receber bolsa nem salário, em um grupo de Química de Materiais que acabava de começar. Tudo foi muito rápido e, quase sem perceber, finalizei meus estudos de graduação e iniciei o doutorado, fabricando micropartículas para catalizadores. Foi uma época muito linda da minha vida, da qual conservo minha curiosidade inata, minha vontade de explorar e construir matéria e um maravilhoso grupo de amigos, que se tornaram destacados colegas disseminados pelo mundo todo.

Boletim da SBPMat: – Quais são, na sua própria avaliação, as suas principais contribuições à área de Materiais, considerando todos os aspectos da atividade científica?

Galo Soler Illia: – Sempre me interessou construir materiais, o trabalho do químico de unir átomo com átomo, de fabricar novas arquiteturas. Centrei-me em compreender os fenômenos fisicoquímicos que ocorrem na produção de um material. Quando a gente conhece e compreende esses processos, passa de simplesmente “preparar” um material a poder projetá-lo e sintetizá-lo, por mais complexo que seja. E a gente pode aproveitar as propriedades dos elementos químicos a seu favor para obter as propriedades que a gente deseja. Vou dar três exemplos. Na minha tese, estudei a precipitação e agregação de nanopartículas de hidróxidos metálicos mistos, precursores de catalisadores. Descobrimos um mundo muito interessante e pudemos contribuir na compreensão da complexidade por trás de um mecanismo dinâmico de formação de partículas: a influência dos efeitos estruturais no formato das partículas, a importância da coordenação dos metais na formação de uma fase mista, a evolução da carga superficial e seu efeito na estabilidade de um coloide e muito mais, que me serviu futuramente como base sólida para minha pesquisa. Tive a sorte de poder trabalhar com Miguel Blesa, Alberto Regazzoni y Roberto Candal, três excelentes Mestres que me guiaram, estimularam e corrigiram.

Na minha segunda etapa, trabalhei em Paris, no laboratório de Clément Sanchez, e, usando o que tinha aprendido, pude desenvolver métodos para produzir materiais com porosidade altamente controlada, conhecidos como materiais mesoporosos organizados. Novamente, interessei-me pelos mecanismos de formação do material, que são complexos, pois demandam o controle do crescimento de pequenas espécies inorgânicas e sua automontagem com micelas. É uma pequena sinfonia físico-química, que é necessário aprender a tocar. Tivemos que usar, desenvolver e combinar técnicas de caracterização muito variadas para poder compreender quais fenômenos estavam ocorrendo e como eles controlavam a formação e organização dos sistemas de poros, a estabilidade e cristalinidade dos materiais, que são, entre outras, as variáveis importantes no desempenho final desses sólidos.

Na minha terceira etapa, de volta à Argentina, estabeleci um grupo de pesquisa na Comisión Nacional de Energía Atómica, em Buenos Aires, e me dediquei a construir arquiteturas mais complexas, baseadas em tudo que tinha aprendido. Minhas melhores contribuições nesse sentido se referem ao uso das forças e interações na nanoescala para fabricar nanocompósitos muito variados com propriedades ópticas e catalíticas projetadas e surpreendentes. Tudo isso demandou a criação de novos laboratórios, a formação de recursos humanos e a transferência de ciência básica a tecnologias. Particularmente, nos últimos anos temos trabalhado com empresas e aspiramos a gerar nanotecnologia na Argentina, estendendo os conhecimentos do nosso laboratório à sociedade.

Boletim da SBPMat: – Conte-nos um pouquinho sobre sua interação com o Brasil. Você vem frequentemente ao país para colaborações, eventos, uso de labs, seminários? Tem trabalhos realizados com grupos do Brasil ou em laboratórios brasileiros?

Galo Soler Illia: – Retornei à Argentina em 2003 e, imediatamente, tive como referencia o que estava se gestando no Brasil. Desde aquela época, comecei a desenvolver projetos no Laboratório Nacional de Luz Síncrotron (LNLS), que é um farol para todos aqueles que trabalhamos em Materiais na América Latina. A interação com o pessoal do síncrotron foi muito importante para podermos caracterizar nossos materiais, e é impressionante ver como as instalações têm melhorado nestes anos. Faz poucos meses, tive a oportunidade de conhecer o prédio do Sirius, que é simplesmente impressionante, e será referência mundial. Também tive a oportunidade de conhecer diversas universidades proferindo cursos e colaborando na formação de graduandos e estudantes de pós-graduação. Além disso, geramos a Escola de Síntese de Materiais, que fazemos em Buenos Aires, e que terá sua oitava edição em 2017. Essa escola foi idealizada para gerar uma comunidade de cientistas latino-americanos com competências na síntese racional de materiais. Começamos com muitos estudantes brasileiros, graças ao apoio da Sociedade Argentino-Brasileira de Nanotecnologia, que depois, infelizmente, parou de funcionar. É muito belo ver como os estudantes de ambos os países trabalham juntos nos laboratórios e discutem e apresentam seus trabalhos em “portunhol”. A partir dessa escola, e com ajuda de vários colegas, estão surgindo redes de colaboração que, sem dúvida, vão nos proporcionar a base tecnológica para fazermos empreendimentos conjuntos de maior porte. Viajo várias vezes por ano ao Brasil e sempre admiro a força do país para impulsionar o desenvolvimento tecnológico local. Espero que, passados estes momentos de dificuldades, possamos continuar crescendo em conjunto.

Boletim da SBPMat: – Sempre convidamos os entrevistados desta seção do boletim a deixarem uma mensagem para os leitores que estão iniciando suas carreiras científicas. O que você diria a esses cientistas juniores?

Galo Soler Illia: – Olhando para atrás, posso fazer três recomendações aos jovens cientistas. Uma é que nunca percam sua imaginação e sua capacidade de se fazerem perguntas; a segunda é que trabalhem duro para encontrar as respostas, e a terceira é que aproveitem as surpresas. Às vezes, a gente está treinado para desenvolver um caminho e uma estratégia e a gente foca no rigor de demonstrar e formalizar o que a gente encontra. Porém, é essencial saber que esse caminho que a gente traça é cheio de cantinhos interessantes, e que, às vezes, um aspecto que não levávamos em consideração nos abre um panorama novo e inexplorado. Dizia Newton que a gente, enquanto científico, é às vezes como uma criança que na praia acha uma concha mais bonita do que outras e é feliz, mas, perante a gente, estende-se o enorme oceano da verdade. Meu conselho é: busquemos incessantemente nossas conchas, curtamos com elas e aproximemo-nos da compreensão das maravilhas do nosso universo. E tenhamos sempre em conta que desenvolver ciência em nosso continente é um belo desafio que vai agregar riqueza a nossos países e bem-estar a nossos irmãos.