A cena se repetiu diariamente enquanto durou o evento: por volta das 8h30 e cerca das 14h00, sob o forte sol de João Pessoa, filas de centenas de participantes ingressavam ao centro de convenções e se instalavam na refrigerada sala das plenárias. Nela, cientistas de carreiras muito destacadas, atestadas por seus índices H de valores entre 40 e 73, vindos da França, Portugal, Alemanha, Inglaterra, Estados Unidos e Itália, compartilharam com os participantes do encontro da SBPMat o conhecimento deles sobre temas nos quais são, sem sombra de dúvida, qualificados especialistas.
A última plenária do evento, a cargo de Robert Chang, professor do primeiro departamento de Ciência de Materiais do mundo, na Northwestern University, retomou dois assuntos que tinham sido explicitados pelo professor Arana Varela na palestra memorial e que permeariam quase todas as plenárias. O primeiro é o papel essencial da área de Materiais e, em particular, da nanotecnologia, no atendimento às necessidades e demandas da humanidade em saúde, alimentação, transporte, segurança e comunicação, e, simultaneamente, na preservação do equilíbrio do meio ambiente. Quanto ao segundo assunto, Arana Varela e Chang, que foi presidente da sociedade estadunidense de pesquisa em Materiais, a MRS, e fundador em 1991 da União Internacional de Sociedades de Pesquisa em Materiais (IUMRS), destacaram a necessidade da colaboração para enfrentar esse duplo desafio do século XXI. Nesse contexto, Chang convocou os jovens brasileiros [vídeo abaixo] a formarem parte de uma rede global lançada em 2012, a qual promove a interação de jovens pesquisadores da área em torno desses desafios mundiais por meio de uma conferência bienal e plataformas virtuais.
Mas a colaboração científica entre físicos, químicos, engenheiros, matemáticos, biólogos e outros pesquisadores para desenvolver as tecnologias necessárias, disse Chang, é insuficiente. Também é preciso, acrescentou, contar com o esforço conjunto e global de governos, empresas, comunidades, famílias e indivíduos para implantar essas tecnologias no dia-a-dia das pessoas. “Isso requer educação”, completou Chang. Nos últimos 20 anos, o cientista tem conduzido o programa Materials World Modules, que desenvolveu material interativo de ensino sobre Materiais e Nanotecnologia destinado a estudantes pré-universitários.
Nanomedicina
O português Luís Carlos, da Universidade de Aveiro, trouxe ao XIII Encontro da SBPMat muitos exemplos de aplicações da nanotecnologia na área da saúde que estão fazendo diferença, ou podem fazê-la no curto prazo.
Especialista em materiais luminescentes, aqueles emissores de luz não resultante do calor, o cientista mostrou em sua palestra plenária que esses materiais já são de grande utilidade no diagnóstico médico. Complexos orgânicos luminescentes, por exemplo, são comercializados como agentes de contraste para imagens por ressonância magnética e como marcadores para fluoroimunoensaios (utilizados em exames pré e neonatais e na detecção de proteínas, vírus, anticorpos, resíduos de fármacos etc.).
Por sua vez, nanopartículas luminescentes (pontos quânticos e nanocristais com íons lantanídeos) despontam tanto em técnicas de diagnóstico quanto no tratamento de doenças. No último grupo se insere o processo de hipertermia, que consiste na exposição de tecidos biológicos, geralmente células cancerosas, a temperaturas superiores a 45°C, provocando sua morte, com lesões colaterais mínimas nos tecidos normais circundantes. Acompanhada de um monitoramento e controle adequado da temperatura, a técnica poderia se popularizar.
Nos últimos anos, tem sido realizados esforços por desenvolver nanotermómetros que meçam a temperatura intracelular para atender essa e outras aplicações, não só em Nanomedicina, mas também em áreas comoa Microeletrônica, Fotônica e Microfluídica. Um exemplo bem sucedido, apresentado por Luís Carlos na plenária, é o do desenvolvimento de uma plataforma nanométrica formada por nanobastões, os quais funcionam como termômetros, com nanopartículas de ouro na sua superfície, as quais funcionam como aquecedores. Uma plataforma que, em contraste com seu pequeno tamanho, pode trazer grandes benefícios ao aprimoramento da técnica de hipertermia e ao estudo dos processos de transferência de calor na nanoescala.
LEDs e outros dispositivos de nitreto de gálio: economia de 25% no consumo mundial de eletricidade
Quem participou do XIII Encontro da SBPMat certamente se lembrou da palestra plenária do professor da University of Cambridge, Sir Colin Humphreys, quando foi anunciado o Prêmio Nobel de Física de 2014 para três cientistas japoneses cujos trabalhos foram essenciais para o desenvolvimento das lâmpadas de LED de luz branca. O material escolhido pelos laureados quando decidiram enfrentar o desafio de criar o LED azul que viabilizaria o LED emissor de luz branca foi o nitreto de gálio, objeto da palestra de Sir Colin.
De fato, o professor é especialista nesse material. Criador e diretor de um centro de pesquisa em Cambridge dedicado ao nitreto de gálio, Humphreys também criou dois empreendimentos para explorar comercialmente a tecnologia desenvolvida por seu grupo de pesquisa para fabricação de LEDs para iluminação de baixo custo, crescidos sobre “wafers” de silício relativamente grandes, de uns 15 cm. Em 2012, as spinoffs foram compradas pela Plessey, fabricante de produtos baseados em materiais semicondutores com mais de 50 anos no mercado, que hoje está fabricando esses LEDs no Reino Unido.
A lâmpada LED de nitreto de gálio hoje oferece uma das maiores durabilidades do mercado – 100.000 horas de uso, o equivalente a 69 anos sem trocar a lâmpada, contra 1.000 horas de vida da lâmpada incandescente e 10.000 da fluorescente. Esses LEDs também apresentam alta eficiência energética, de 100 a 200 lumens (quantidade de luz emitida em um segundo) por watt de potência consumida.
Na plenária, Sir Colin mostrou que a ampla utilização de LEDs em iluminação (um dos poucos segmentos em que ainda não se universalizou o uso de dispositivos de alta eficiência energética) resultaria numa economia de cerca de 15% no total de eletricidade consumida no planeta e, portanto, numa notória redução nas emissões de dióxido de carbono.
Mais energia pode ser economizada, disse o professor de Cambridge, substituindo o silício por nitreto de gálio, também nestes casos mais eficiente no uso da eletricidade, em diversos dispositivos eletrônicos. No total, concluiu Humphreys, até 25% de toda a eletricidade usada hoje no mundo poderia ser economizada. Motivo que, acrescido a outras aplicações do nitreto de gálio no campo da saúde, foi suficiente para o cientista britânico afirmar que esse material criado pelo homem é um dos mais importantes.
Semicondutores orgânicos: OLEDs e células solares em destaque
Da mesma forma que os LEDs, os OLEDs, que são fabricados com materiais orgânicos que justificam a letra “O” da sigla, convertem diretamente a eletricidade em luz e são, portanto, dispositivos de alta eficiência potencial, a qual vem sendo efetivamente melhorada ano a ano. LEDs e OLEDs, cada um com seus diferenciais, já concorrem em alguns mercados, como o de displays e, de maneira mais incipiente no caso dos orgânicos, no de iluminação.
Junto com as células solares orgânicas, os OLEDs foram foco da palestra plenária de Karl Leo, professor da universidade alemã TU Dresden e da árabe-saudita KAUST, autor de mais de 550 papers com 23.000 citações e 50 famílias de patentes, além de fundador de 8 empresas spinoff, como as hoje consolidadas Heliatek e a Novaled, que fabricam células solares orgânicas e OLEDs, respectivamente.
O professor Leo compartilhou com o público uma importante quantidade de resultados conseguidos por seus grupos de pesquisa no que diz respeito a melhorar o desempenho de dispositivos semicondutores orgânicos. Junto a seus colaboradores, Karl Leo tem desenvolvido um extenso trabalho sobre a dopagem de semicondutores orgânicos das camadas de transporte de OLEDs e células solares para aumentar significativamente sua condutividade elétrica – trabalho que resultou, por exemplo, na obtenção de OLEDs emissores de luz branca com eficiência energética mais alta do que a dos tubos fluorescentes.
Karl Leo não foi o único cientista destacado internacionalmente presente em João Pessoa representando a área de semicondutores orgânicos. Na quarta-feira à tarde, uma mesa redonda organizada pelo Simpósio D reuniu quatro desses renomados especialistas: Alberto Salleo (Stanford University), Franky So (University of Florida), Heinz von Seggern (TU Darmstadt) e Jenny Nelson (Imperial College London). Moderada por um destacado cientista brasileiro da área, Roberto Mendonça Faria, professor do Instituto de Física de São Carlos da USP e presidente da SBPMat, o painel congregou dezenas de participantes do encontro, de diversas idades, que participaram ativamente do debate. Em torno do tema dos desafios da eletrônica orgânica, da pesquisa básica à produção em massa (ou produção individual, conforme apontou um jovem do público chamando a atenção para as técnicas de impressão em 3D), diversos assuntos dos campos científico, industrial e social foram abordados pelos membros do painel a partir das perguntas do público. “Felizmente, existem desafios para a Ciência dos Materiais. Infelizmente, desafios existem para a produção em massa”, resumiu o professor Faria, retomando, de alguma maneira, uma das primeiras falas da mesa redonda, em que a professora Jenny lamentou que a comunidade científica celebrasse muito mais o desenvolvimento de um dispositivo que funciona do que a compreensão dos motivos pelos quais determinado dispositivo não funcionou.
Alberto Salleo, criador em Stanford de um grupo que vem estudando a relação entre estrutura e propriedades em semicondutores poliméricos para melhor compreender a geração e transporte de cargas nesses materiais, também proferiu uma plenária no evento. Na palestra, Salleo colocou em dúvida a universalidade de um pressuposto difundido no ambiente científico que relaciona um alto grau de cristalinidade (ou ordem) na microestrutura desses polímeros a uma mobilidade de cargas mais alta ou a um melhor desempenho dos dispositivos. O cientista mostrou que a desordem é boa para as células solares orgânicas e citou exemplos de polímeros semicondutores quase amorfos de desempenho similar a outros de estrutura muito mais ordenada.
O professor de Stanford apresentou um modelo desenvolvido no seu grupo para mostrar como funciona o transporte de cargas nos semicondutores orgânicos, materiais de microestruturas heterogêneas, caracterizadas pela coexistência de agregados ordenados e desordenados e de longas cadeias poliméricas. Para que exista uma alta mobilidade de cargas, revelou Salleo, o importante é que os agregados se conectem entre si, o que acontece por meio dos “spaghetti” poliméricos.
Ordem sim, mas sem periodicidade
Muito longe da desordem, mas também fora da ordem cristalina tradicional estão os quasicristais, tema geral da plenária do francês Jean-Marie Dubois, do Institut Jean Lamour, cuja experiência no assunto foi reconhecida pela comunidade científica por meio da criação do “Prêmio Internacional Jean-Marie Dubois”, outorgado a cada três anos a pesquisas relacionadas a quasicristais.
Dubois apresentou uma introdução sobre quasicristais, materiais nos quais os átomos estão agrupados em células unitárias de padrões ordenados (podem ser determinados por algoritmos), mas não periódicos (nunca se repetem). Belas imagens científicas e artísticas entremeadas na apresentação de Dubois permitiram visualizar essa ordem aperiódica.
O palestrante homenageou Dan Shechtman, que descobriu os quasicristais em 1982 e, após muitas brigas e resistências na comunidade científica, acabou ganhando o Prêmio Nobel de Química em 2011 e gerando uma grande mudança na visão da ciência sobre a matéria condensada ordenada. Hoje, materiais quasicristalinos são sintetizados e utilizados em diversos produtos, como autopeças e panelas, para melhorar sua condutividade térmica, adesão, atrito, resistência à corrosão etc. Vale destacar que Dubois consta entre os pioneiros no depósito de patentes visando aplicações dos quasicristais.
A ordem quasicristalina pode ser observada nos mais diversos tipos de materiais. Na palestra do XIII Encontro, Dubois abordou, em particular, ligas metálicas formadas por três elementos (A, B e C), nas quais A – B e B – C formam ligações químicas, enquanto B e C se repelem. Denominados por Dubois “ligas puxa-empurra” (push-pull alloys), esses materiais podem formar compostos intermetálicos muito complexos, de até centenas de átomos por célula unitária. Dentre esses, só alguns podem aumentar ainda mais sua complexidade até formar uma ordem quasicristalina, que resulta em propriedades únicas e abrem possibilidades para novas aplicações.
Simulação computacional
Em mais uma plenária do XIII Encontro da SBPMat, adeptos e interessados no uso de simulação computacional como complemento ao trabalho experimental na investigação das propriedades dos materiais puderam ouvir do professor Roberto Dovesi (Università di Torino) que essa dupla abordagem vale a pena.
Dovesi é um dos criadores de CRYSTAL, uma ferramenta computacional que permite caracterizar sólidos cristalinos do ponto de vista da Mecânica Quântica, por meio de cálculos ab initio. A primeira versão do programa foi desenvolvida a partir de 1976 e lançada em 1988, transformando o CRYSTAL no primeiro código periódico distribuído publicamente para a comunidade científica. Atualmente em sua sétima versão, o programa permite estudar propriedades elásticas, piezoelétricas, fotoelásticas, dielétricas, polarizabilidade e tensores de hiperpolarizabilidade, espectro IR e RAMAN, estrutura de bandas eletrônicas e fonônicas, entre outras propriedades.
O químico italiano destacou o preço acessível e alta velocidade de trabalho dos computadores atuais que são adequados para rodar programas desse tipo. Como exemplo, citou o computador mais recentemente adquirido por seu grupo de pesquisa para simulação computacional, que, tendo custado cerca de 6.500 euros (o equivalente hoje a uns 20.000 reais), é capaz de fazer longos cálculos em poucas horas com seus 64 “cores”. Supercomputadores não são necessários, disse Dovesi, além de serem menos robustos. Quanto ao software, Dovesi remarcou que hoje a área de Materiais conta com programas poderosos, robustos, fáceis de usar e de preços acessíveis (a licença básica da última versão do CRYSTAL, por exemplo, custa a partir de 600 euros – uns 1.900 reais).