Ossos, dentes e conchas marinhas podem ser considerados exemplos de materiais complexos desenvolvidos pela natureza e seu principal parceiro, o tempo. Como resultado de muitíssimos anos de evolução, materiais como esses apresentam propriedades de grande interesse para o ser humano, mas o desenvolvimento de rotas artificiais de fabricação para chegar a essas propriedades vem colocando grandes desafios aos cientistas.
O Grupo de Materiais Complexos do ETH (Instituto Federal de Tecnologia de Zurique, Suíça), fundado pelo brasileiro André Studart, de 38 anos, está dedicado a esse tipo de desafios. Studart se formou em 1997 em Engenharia de Materiais pela Universidade Federal de São Carlos (UFSCar), onde também realizou seu doutorado em Ciência e Engenharia de Materiais, sob orientação do professor Victor Pandolfelli, desenvolvendo uma pesquisa sobre métodos de processamento de concretos refratários e cerâmicas avançadas próximas do formato final desejado. Durante o doutorado, teve sua primeira experiência como pesquisador na Suíça, no ETH, com uma bolsa de doutorado-sanduíche. A ETH é conhecida, especialmente, por contar com 21 ganhadores de prêmios Nobel entre seus ex-alunos, ex-professores e professores, como o próprio Albert Einstein.
Logo após defender o doutorado na UFSCar, Studart voltou ao ETH, onde ficou por cinco anos trabalhando no grupo de materiais inorgânicos não metálicos. Da Suíça foi para os Estados Unidos fazer um pós-doutorado na Universidade de Harvard. Ali estudou materiais inorgânicos porosos obtidos usando técnicas de microfluidos. No início de 2009, Studart retornou novamente ao ETH para ser professor assistente e fundou o Laboratório de Materiais Complexos, que lidera até hoje. O grupo reúne jovens de cinco nacionalidades diferentes – uma mistura interessante não apenas para a pesquisa, mas também para os eventos sociais que a equipe realiza, como a picanha invertida e a competição de tortas multifuncionais e complexas.
A seguir, uma breve entrevista com Studart sobre materiais complexos e biomimética, a imitação do mundo biológico por parte do ser humano.
Boletim da SBPMat (B.S.): – Qual a relação entre materiais complexos e biomimética? Seu grupo de pesquisa estuda materiais complexos biomiméticos?
André Studart (A.S.): – O termo “materiais complexos” é bem amplo. Eu diria que os materiais biológicos e os biomiméticos exibem estruturas bastante complexas em escala nano e micrométrica, e por isso podem ser considerados materiais complexos. Mas esse termo pode também ser utilizado para descrever muitos outros tipos de materiais sintéticos ou naturais, incluindo, por exemplo, as emulsões e espumas que estudamos no grupo. Portanto, a nossa pesquisa é centrada em alguns tipos de materiais complexos, dentre os quais se incluem os materiais biomiméticos.
B.S.: – Como ocorre, na prática do grupo de pesquisa, a inspiração na Natureza?
A.S.: – A inspiração acontece buscando na literatura exemplos de materiais biológicos que apresentam propriedades especiais que normalmente são difíceis de se obter com materiais sintéticos. Essa literatura inclui tanto artigos antigos escritos por zoólogos interessados principalmente em evolução como também trabalhos mais recentes de pesquisadores de varias áreas que buscam extrair princípios de design dos materiais biológicos utilizando técnicas mais avançadas para sua caracterização.
B.S.: – Comente um pouco sobre a evolução mundial da pesquisa em materiais complexos biomiméticos.
A.S.: – A pesquisa em materiais biomiméticos começou com alguns trabalhos nos anos 80, em que a estrutura de conchas marinhas começou a ser investigada por uns poucos pesquisadores sob a perspectiva da ciência de Materiais (não da zoologia), com o objetivo de entender o seu design e possivelmente utilizá-lo em materiais artificiais. Na verdade, a maior parte desses pesquisadores não tinham esse tópico como foco principal da pesquisa, mas o estudavam motivados puramente pela curiosidade cientifica. Com o passar dos anos, percebeu-se que os materiais biológicos são exemplos muito ricos de como se pode “engenheirar” a microestrutura de materiais para resolver problemas mecânicos desafiadores impostos pelo meio ambiente, e isso desencadeou o forte interesse nessa área dos últimos anos. Atualmente, é até difícil acompanhar todos os avanços, tamanha a quantidade de artigos no assunto. Tem-se avançado muito na área de caracterização de materiais biológicos com técnicas elaboradas, como tomografia in situ de materiais sob tensão mecânica, mapeamento com espectroscopia Raman, entre várias outras.
B.S.: – Na sua opinião, quais são os próximos desafios da pesquisa e desenvolvimento em materiais complexos biomiméticos?
A.S.: – No meu ponto de vista, o grande desafio atualmente é desenvolver técnicas sintéticas de processamento para possibilitar a fabricação de fato de materiais que reproduzam alguns desses princípios de design já encontrados em materiais biológicos. A natureza fabrica esses materiais utilizando processos biológicos muito complexos coordenados pelas células, como a biomineralização. Apesar do grande interesse e avanços em pesquisas que estudam o processo de biomineralização, acredito que o desenvolvimento de técnicas artificiais terá um impacto mais rápido na área. Esse é o foco atual da pesquisa no nosso grupo.
B.S.: – Conte um pouco sobre como você começou a pesquisar materiais complexos e biomiméticos após vários anos estudando cerâmicas avançadas.
A.S.: – O interesse em materiais biomiméticos começou ainda no doutorado quando me deparei com esses trabalhos muito interessantes sobre as conchas marinhas. Naquela época, o foco da minha pesquisa eram as cerâmicas refratárias com altas propriedades mecânicas. Apesar de não serem refratárias, conchas contêm em torno de 95% de carbonato de cálcio, e por isso podem ser consideradas um material cerâmico com microestrutura muito rica e elaborada. Não cheguei a utilizar esse conceito nas cerâmicas refratárias. A oportunidade só apareceu no final do meu primeiro pós-doc em Zurique, junto com um aluno de doutorado que se interessou em tentar obter estruturas com a organização em lamelas da concha. Vi então os enormes desafios encontrados quando se tenta replicar essa estrutura artificialmente e percebi que o meu conhecimento em processamento de pós cerâmicos poderia ser de grande utilidade para abordar esses desafios. Então, isso se tornou a parte central da minha pesquisa quando tive a oportunidade de iniciar o meu próprio grupo independente.
B.S.: – Há grupos no Brasil estudando esses temas?
A.S.: – Acredito que alguns grupos tenham começado a explorar essa área no Brasil, com foco em materiais orgânicos supramoleculares. A expectativa é de que em breve o tópico terá um impulso importante no país. A ideia é que um dos primeiros alunos de doutorado do meu grupo estabeleça um laboratório nessa área no estado de São Paulo ainda neste ano.
Para saber mais.
Artigos científicos do grupo selecionados por André Studart para os interessados em materiais complexos biomiméticos:
– Studart, A. R., Towards High-Performance Bioinspired Composites. Advanced Materials 2012, 24, (37), 5024-5044.
– Libanori, R.; Erb, R. M.; Reiser, A.; Le Ferrand, H.; Süess, M. J.; Spolenak, R.; Studart, A. R., Stretchable heterogeneous composites with extreme mechanical gradients. Nature Communications 2012, 3, 1265.
– Erb, R. M.; Libanori, R.; Rothfuchs, N.; Studart, A. R., Composites Reinforced in Three Dimensions by Using Low Magnetic Fields. Science 2012, 335, (6065), 199-204.