Biofilmes são comunidades de microrganismos que convivem dentro de uma matriz polimérica produzida por eles mesmos formando uma estrutura tridimensional. Os biofilmes crescem aderidos às mais diversas superfícies, naturais ou artificiais, e podem incluir uma diversidade de bactérias e fungos. Quando encontradas sobre nossos dentes, essas comunidades de micróbios podem causar prejuízos à saúde bastante conhecidos, como a cárie dental. Ainda dentro da boca, onde a tendência a formar biofilmes não é pequena, implantes dentários também podem ser prejudicados pela ação de biofilmes. De fato, a principal causa de falha em implantes dentários está relacionada a infecções nos tecidos circundantes ao implante, devidas ao acúmulo de bactérias sobre os parafusos de titânio que são implantados pelo cirurgião-dentista no osso do maxilar ou mandíbula para fazer o papel de raízes das próteses dentárias.
Pensando nesse problema, uma equipe de pesquisadores de áreas relacionadas a odontologia e materiais desenvolveu um revestimento capaz de reduzir a adesão de bactérias e fungos à superfície do titânio, atacando assim a formação de biofilmes na sua primeira etapa. No novo revestimento, a adesão de bactérias foi oito vezes menor do que no titânio sem revestir. Além disso, o revestimento mudou a composição da população de micróbios nos biofilmes que chegaram a aparecer na superfície. Dessa maneira, a presença de bactérias diretamente responsáveis por gerar infecções em torno dos implantes foi sete vezes menor no revestimento do que no titânio sem revestir. “Nosso revestimento não apenas reduziu a adesão de microrganismos, mas também modificou a sua composição para um perfil menos agressivo ao hospedeiro”, resume o professor Valentim Adelino Ricardo Barão (UNICAMP), autor correspondente de artigo sobre o trabalho, recentemente publicado na ACS Applied Materials and Interfaces. Finalmente, além de gerar as propriedades antibiofilme no titânio, o revestimento manteve a biocompatibilidade desse material, permitindo o crescimento de células humanas em sua superfície, e aumentou sua resistência à corrosão.
De acordo com os autores do trabalho, este novo revestimento pode ser uma estratégia promissora para controlar a formação de biofilmes em implantes de titânio e assim reduzir o desenvolvimento de infecções microbianas. “Inúmeros revestimentos vêm sendo desenvolvidos nesta área”, contextualiza o professor Barão. “No entanto, os disponíveis no mercado objetivam, principalmente, melhorar propriedades biomecânicas e a biocompatibilidade, não sendo efetivos em reduzir o acúmulo de microrganismos”. Conforme os autores do artigo, para poder aplicar o titânio revestido em pacientes e disponibilizá-lo no mercado, seria necessário testar sua inserção como implante dentário em modelos animais e, finalmente, realizar um ensaio clínico controlado que contemple a inserção do material em seres humanos.
Do desenvolvimento do material aos estudos in vitro e in situ.
A pesquisa foi realizada dentro do doutorado de João Gabriel Silva Souza, com orientação do professor Barão e financiamento das agências brasileiras Fapesp e Capes. A tese foi defendida em 2019 no Programa de Pós-Graduação em Clínica Odontológica da Faculdade de Odontologia de Piracicaba da UNICAMP.
O objetivo principal da tese, conta Souza, foi desenvolver um revestimento para o titânio, material amplamente usado em odontologia, com capacidade de reduzir o acúmulo microbiano, usando a tecnologia de plasma de baixa pressão. As buscas bibliográficas apontaram que uma superfície superhidrofóbica seria uma promissora alternativa para reduzir a adesão de bactérias em titânio e suas ligas. Considera-se que uma superfície é superhidrofóbica (ou seja, muito difícil de molhar) quando o ângulo formado entre ela e uma gota de água é maior que 150º. A superhidrofobicidade, por sua vez, tem como bases a alta rugosidade e a composição química da superfície.
“Com base nessa ideia e estudos prévios já desenvolvidos pelo grupo de pesquisa do professor Barão, buscamos desenvolver um revestimento superhidrofóbico com a tecnologia de plasma, alterando diversos parâmetros, como pressão, gases etc.”, conta Souza.
O revestimento foi desenvolvido e caracterizado no Laboratório de Plasmas Tecnológicos da UNESP – Sorocaba, que engloba o Laboratório Multiusuário de Caracterização de Materiais, sob orientação da professora Elidiane Rangel. “A professora Elidiane tem ampla experiência na área e vem contribuindo amplamente com nosso grupo de pesquisa no desenvolvimento de revestimentos para aplicabilidade odontológica”, comenta o professor Barão.
Enquanto a literatura científica registrava revestimentos superhidrofóbicos fabricados, principalmente, em duas etapas (uma para obter rugosidade e a segunda para conseguir a hidrofobicidade), a professora Rangel conseguiu fabricar o revestimento em apenas uma etapa, usando a técnica de PECVD (plasma-enhanced chemical vapor deposition). Nessa técnica, forma-se, dentro de um reator, uma atmosfera de gases cuidadosamente selecionados (neste caso, oxigênio, argônio e hexametildissiloxano, de fórmula C6H18OSi2). Depois de aplicar uma tensão elétrica, essa atmosfera fica altamente energizada (em estado de plasma), os gases se decompõem e geram-se espécies (átomos, moléculas, íons) com muita propensão a reagir quimicamente. Essas espécies formam novos compostos que se depositam em estado sólido na superfície do material que se deseja revestir (neste caso, o titânio).
Para fabricar o revestimento superhidrofóbico por meio dessa técnica, a professora Elidiane realizou um processo único de 60 minutos. O resultado foi uma superfície baseada em silício e oxigênio, de aspecto semelhante à couve-flor, com uma rugosidade diversa. Fazendo uma analogia com o relevo do nosso planeta, o revestimento apresentou, na escala micrométrica, montanhas de diversas alturas e formatos, separadas por vales e cânions.
Depois de obter o revestimento, com o objetivo de testar sua efetividade como antibiofilme, a pesquisa envolveu grupos de pesquisa da Universidade de Guarulhos e da University of Connecticut Health Center (EUA), onde o então doutorando Souza realizou o chamado “período sanduíche de doutorado”. Além disso, o Laboratório Nacional de Nanotecnologia (LNNano) e o Laboratório Nacional de Biociências (LNBio) do Centro Nacional de Pesquisa em Energia e Materiais (CNPEM) foram utilizados para caracterização do revestimento e análise da composição de proteínas aderidas nele, respectivamente.
A equipe de cientistas fez então uma série de testes e análises microbiológicas, tanto em laboratório (in vitro), quanto na boca de voluntários (in situ), sempre comparando o titânio sem revestir e o titânio com o revestimento superhidrofóbico. Em um dos experimentos in vitro, utilizaram saliva natural como meio de cultivo de diversos microrganismos usualmente presentes em biofilmes que crescem em implantes. Em contato com esse meio, as amostras de titânio revestidas mostraram um desempenho antibiofilme muito bom com relação ao titânio sem revestir: a adesão do conjunto de micróbios foi oito vezes menor, e, em particular, a adesão de uma bactéria diretamente responsável pela formação da matriz dos biofilmes foi 17 vezes menor. Consequentemente, em uma etapa posterior do experimento, a formação de biofilme no revestimento foi escassa e esparsa.
Em outro interessante teste, realizado in situ, quatro voluntários usaram durante 3 dias um aparelho no palato, formado por alguns discos de titânio sem tratar e outros com o revestimento superhidrofóbico. Ao analisar a composição dos biofilmes formados nas duas superfícies, a partir da parceria com a professora Magda Feres da Universidade de Guarulhos, os pesquisadores se surpreenderam mais uma vez com o desempenho positivo do revestimento desenvolvido, que reduziu em sete vezes a presença de patógenos diretamente associados a infecções que levam a falhas em implantes dentários, alterando a composição de microrganismos presentes.