História da pesquisa em Materiais: Seis décadas de operação do reator nuclear de pesquisa IEA-R1.

O IEA-R1, primeiro reator nuclear do Brasil e primeiro reator de pesquisa da América Latina, completou 60 anos de operação ininterrupta e os comemorou com um workshop internacional sobre o uso de reatores de pesquisa. O evento foi realizado de 28 de novembro a 1º de dezembro do ano passado na cidade de São Paulo, no auditório do Instituto de Pesquisas Energéticas e Nucleares (IPEN), localizado no campus principal da Universidade de São Paulo (USP). Segundo os organizadores, cerca de 300 pessoas de diversos países participaram do evento.

O IEA-R1 é bastante conhecido por produzir isótopos radioativos que são usados em medicina, indústria e agricultura, suprindo parcialmente as necessidades nacionais. São exemplos o Iodo-131, que se produz no IEA-R1 desde 1959 e é utilizado no diagnóstico e tratamento de câncer de tireoide, e o Samário-153, utilizado como paliativo da dor em metástases ósseas.

Além de fornecer esses elementos a hospitais, indústrias e outras entidades, o IEA-R1 é utilizado, desde o início, em trabalhos de pesquisa em diversas áreas, inclusive a de Materiais. Nessas pesquisas são utilizados os feixes de nêutrons livres (nêutrons que foram separados dos núcleos dos átomos), gerados no núcleo do reator por meio do processo de fissão nuclear. A interação dos nêutrons com as amostras fornece informações únicas sobre a estrutura e composição dos materiais.

De acordo com de acordo com Frederico Genezini e Rajendra Narain Saxena, pesquisadores do IPEN e, respectivamente, gerente atual e ex-gerente do Centro do Reator de Pesquisas (CRPq), os nêutrons têm uma característica muito específica de interação com a matéria. É possível, por meio de seu espalhamento, fazer estudos de estruturas cristalinas, e como o nêutron possui momento magnético, ele também é usado para estudar propriedades magnéticas dos materiais.

IEA-R1: piscina, núcleo do reator e outros elementos vistos de cima.
IEA-R1: piscina, núcleo do reator e outros elementos vistos de cima.

Localizado no próprio IPEN, o reator é formado por uma piscina de 9 metros de profundidade de águas de um azul intenso, cor originada pelo chamado “efeito Cherenkov”, no qual partículas carregadas (no caso, íons gerados pela fissão nuclear) atravessam o meio (no caso, a água) a uma velocidade superior à da luz nesse meio, emitindo a chamativa radiação azul. A água da piscina é contida por paredes de 1 a quase 3 metros de espessura construídas com um concreto muito resistente. O fundo da piscina alberga o núcleo do reator, no qual o urânio é bombardeado com nêutrons, gerando reações de fissão nuclear. Como resultado, os núcleos dos átomos de urânio são divididos em dois, enquanto são liberados dois ou três nêutrons e uma grande quantidade de energia (aquela fortíssima energia capaz de manter unidos os prótons e nêutrons no núcleo do átomo). Enquanto nas usinas nucleares aproveita-se a energia liberada, nos reatores de pesquisa o produto mais importante são os nêutrons, motivo pelo qual os componentes do reator visam a preservar os nêutrons livres.

A água e o concreto em torno do núcleo cumprem importantes funções de segurança, que impedem que níveis nocivos de radiação passem para as proximidades da piscina, nas quais circulam pesquisadores, a equipe responsável pelo reator e os visitantes (cerca de 2.000 pessoas visitam cada ano o IEA-R1).

O processo de produção do urânio para o IEA-R1 é totalmente realizado no Brasil. O minério é extraído e processado na Bahia, enriquecido até pouco menos de 20% no Centro Tecnológico da Marinha de Iperó (SP), e, finalmente, acondicionado dentro dos “elementos combustíveis” que depois são colocados no núcleo do reator. O Brasil pertence ao grupo de apenas 12 países que podem enriquecer urânio.

Nêutrons para investigar a matéria

box exemplosEm torno da piscina, na parte inferior, o reator IEA-R1 possui 12 estações experimentais, nas quais feixes de nêutrons extraídos do reator são disponibilizados para serem usados em conjunto com diversas técnicas experimentais.

De acordo com Genezini e Saxena, no momento, apenas três das estações têm equipamentos instalados: o difratômetro de nêutrons de alta resolução, os sistemas de imageamento por nêutrons em tempo real, e o sistema experimental para estudos de terapia por captura de nêutrons com boro (BNCT). Entretanto, as outras estações estão disponíveis para instalação de instrumentos sob demanda. As duas primeiras facilidades são muito úteis para o estudo de materiais, e apresentam vantagens com relação a equipamentos equivalentes que usam raios-X em vez de nêutrons. Segundo Genezini e Saxena, o difratômetro permite estudos de estruturas cristalográficas de materiais que um difratômetro de raios-X nem sempre consegue observar, além do estudo das estruturas magnéticas.

“Enquanto que os raios-X interagem com a matéria mediante forças eletromagnéticas, os nêutrons interagem basicamente via forças nucleares”, explica Reynaldo Pugliesi, pesquisador do IPEN e responsável pelos equipamentos de imageamento por nêutrons, projetados e construídos no IPEN e instalados em uma das estações o IEA-R1. Para se ter uma ideia, uma amostra de 1 cm2 sendo analisada nessa estação experimental pode receber cerca de 8 milhões de nêutrons por segundo.

O imageamento por nêutrons fornece, sem destruir nem danificar as amostras, imagens em duas ou três dimensões (esta última chamada de tomografia por nêutrons) de detalhes que de outro modo seriam imperceptíveis aos olhos humanos. Em particular, materiais ricos em hidrogênio (como óleo, água adesivos e borrachas) são particularmente bem captados nas imagens obtidas por nêutrons, mesmo quando encapsulados em alguns metais como aço, alumínio e chumbo. De fato, os nêutrons conseguem penetrar vários centímetros nos metais e revelar o que há dentro deles. Também nesse sentido, a imagem por nêutrons é complementar da imagem por raios-X: enquanto os nêutrons revelam materiais leves que se encontram por trás de materiais pesados (como uma fita crepe no interior de uma estrutura de alumínio), os raios-X revelam materiais pesados por trás de materiais leves (como os ossos da mão).

Aplicações da tomografia com nêutrons: inspeção de uma restauração feita num vaso cerâmico para conferir o grau de perfeição do trabalho.
Aplicações da tomografia com nêutrons: inspeção de uma restauração feita num vaso cerâmico para conferir o grau de perfeição do trabalho.

O IEA-R1 é aberto à comunidade científica e empresarial por meio de colaborações com pesquisadores do CRPq, centro que coordena a operação do reator e as pesquisas que se realizam com ele. “Nesse modelo temos muitos exemplos de instituições e empresas que usaram os feixes de nêutrons do IEA-R1 e outros instrumentos nos laboratórios do CRPq para medidas”, diz Genezini. De acordo com ele, outros modelos (como o de prestação de serviços) não são possíveis por não haver técnicos dedicados a cada instrumento. “Entretanto, esse modelo tem se mostrado pouco eficiente e estamos investindo em instrumentação e regulamentos para tornar os equipamentos de feixes de nêutrons mais acessíveis ao uso de pessoas externas”, conclui o gerente do CRPq.

História

As origens do reator nuclear IEA-R1 se remontam a meados da década de 1950, quando os Estados Unidos, sob a presidência de Dwight Eisenhower, lançaram o programa “Atoms for Peace”, o qual divulgava e incentivava em nível mundial os usos pacíficos e civis da tecnologia nuclear. Nesse contexto, o Brasil e os Estados Unidos firmaram acordos visando à descoberta e pesquisa de urânio no Brasil e ao desenvolvimento e uso no Brasil de isótopos radioativos para a agricultura e a indústria. Para isso, era necessário contar com um reator nuclear no território nacional.

Assim, em agosto de 1956, o governo brasileiro decretou a criação do Instituto de Energia Atômica (IEA), que mais tarde passaria a ser chamado IPEN, para supervisionar a construção e operação do IEA-R1. A construção ficou a cargo da empresa estadunidense The Babcock & Wilcox Company, acompanhada por uma equipe brasileira liderada pelo primeiro diretor do IEA-R1, o físico nuclear Marcelo Damy de Souza Santos, também considerado fundador do IEA. Em agosto de 1957, a construção do reator foi concluída e, em 16 de setembro do mesmo ano, o reator alcançou as condições necessárias para entrar em funcionamento. A cerimônia de inauguração do IEA-R1 foi realizada em 25 de janeiro de 1958, com a presença do Presidente Juscelino Kubitschek e do Governador do Estado de São Paulo Jânio Quadros.

A partir do IEA-R1, o Brasil pôde desenvolver conhecimento nacional para produzir combustível nuclear, instrumentos para pesquisa com nêutrons e radioisótopos, os quais tem sido usados nos segmentos de saúde, agricultura e diversas indústrias. O reator também foi utilizado para produzir, por meio da técnica de transmutação induzida por nêutrons, semicondutores para componentes eletrônicos que foram exportados. Além disso, foi usado para treinar operadores de reatores e para realizar trabalhos acadêmicos.  De acordo com Genezini e Saxena, mais de 250 teses de doutorado e dissertações de mestrado foram defendidas durante o período nas áreas de Física Nuclear e de Matéria Condensada, e mais de mil artigos científicos foram publicados em periódicos indexados.

Proximamente…

Mais um capítulo da história dos reatores de pesquisa no Brasil está sendo escrito. Está em andamento o projeto do Reator Multipropósito Brasileiro (RMB), um reator nuclear mais moderno e com 30 MW de potência (contra 5 MW do IEA-R1). Em conjunto com suas estações experimentais, o RMB será um laboratório nacional aberto à comunidade para pesquisa e para produção radioisótopos, instalado num terreno de 2 milhões de m2 em Iperó (SP).

De acordo com José Augusto Perrotta, coordenador técnico do Reator Multipropósito Brasileiro (RMB), o reator RMB ainda está na fase de projeto. Os projetos conceitual e básico já foram concluídos, e está sendo executado o projeto detalhado. Além disso, já foram emitidas a licença prévia do IBAMA (Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis) e a licença de local da CNEN (Comissão Nacional de Energia Nuclear). Entretanto, o cronograma inicial foi afetado por problemas com os recursos financeiros. “O MCTIC não passou os recursos em 2017”, diz Perrota. “O projeto continuou apenas com os recursos designados em 2014. Cada ano sem recursos é um ano de atraso! ”, lamenta.

 

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