O artigo científico com participação de membros da comunidade brasileira de pesquisa em Materiais em destaque neste mês é: Giant Barocaloric Effects in Natural Rubber: A Relevant Step toward Solid-State Cooling. N. M. Bom, W. Imamura, E. O. Usuda, L. S. Paixão, and A. M. G. Carvalho. ACS Macro Lett. 2018, 7, 31-36. dx.doi.org/10.1021/acsmacrolett.7b00744
Borracha sob pressão para refrigeração de estado sólido
Uma equipe de pesquisadores do Brasil descobriu que a borracha natural vulcanizada é campeã com relação a qualquer outro material já estudado na sua capacidade de mudar de temperatura ao ser comprimida e descomprimida – um fenômeno conhecido como “efeito barocalórico”.
A descoberta abre interessantes possibilidades de uso da borracha natural vulcanizada em aplicações avançadas, principalmente na área da “refrigeração de estado sólido”. Essa expressão se refere a sistemas de refrigeração (como a geladeira ou o ar condicionado) que se baseiam no uso de materiais refrigerantes em estado sólido para absorver o calor do sistema que se deseja esfriar e transferi-lo para um ambiente externo, em vez dos fluídos (estados gasoso e líquido) que são usados nos dispositivos convencionais. A pesquisa foi reportada em um artigo recentemente publicado no ACS Macro Letters, periódico da editora da American Chemical Society da área de Ciência de Polímeros e afins, cujo fator de impacto é de 6,185.
“Considerando que a borracha natural esquenta bastante quando pressionada (mais de 20 graus acima da temperatura inicial) e esfria quando a pressão é aliviada (pelo menos 20 graus abaixo da temperatura inicial), podemos pensar em utilizá-la como um material refrigerante em um refrigerador”, diz Alexandre Magnus Gomes Carvalho, pesquisador do Laboratório Nacional de Luz Síncrotron (LNLS), do Centro Nacional de Pesquisa em Energia e Materiais (CNPEM) e autor correspondente do artigo.
A representação do ciclo barocalórico de um material sólido exibida ao lado dá uma ideia de como a borracha natural vulcanizada pode esfriar um sistema, retirando calor dele e liberando-o ao ambiente externo.No processo 1 do ciclo, comprime-se de forma rápida a borracha (representada pelos retângulos amarelos) e, em consequência, sua temperatura aumenta abruptamente (Tquente). No processo 2, a pressão sobre a borracha é mantida constante, mas sua temperatura se reduz ao liberar calor para o ambiente externo buscando o equilíbrio térmico. Vale lembrar que, na natureza, dois corpos ou sistemas com temperaturas diferentes tendem a buscar o equilíbrio térmico – estado em que as temperaturas de ambos se igualam. Esse equilíbrio é alcançado mediante a transferência de calor do sistema ou corpo mais quente para o mais frio. No processo 3 do ciclo, quando a borracha atinge sua temperatura inicial (Ti), alivia-se rapidamente a pressão, fazendo a temperatura da borracha diminuir abruptamente (Tfria). No processo 4, o ambiente externo transfere calor à borracha, novamente em busca do equilíbrio térmico. Quando a borracha atinge a temperatura inicial, o ciclo recomeça a partir de um novo processo de compressão.
Para investigar o efeito barocalórico da borracha, Carvalho e os demais autores do artigo utilizaram amostras de borracha natural vulcanizada de cerca de 1 cm de diâmetro. Com elas, realizaram um estudo sistemático no qual foram variando a pressão exercida nas amostras e a temperatura inicial das mesmas, e medindo as variações de temperatura e entropia (ambas diretamente relacionadas à variação de calor de um sistema). Os experimentos foram realizados no Laboratório de Materiais i-Calóricos (LMiC), um dos laboratórios temáticos do LNLS, no CNPEM, cujo coordenador é Alexandre Carvalho.
Depois de obterem as medidas experimentais das propriedades barocalóricas da borracha natural vulcanizada, os pesquisadores as compararam com resultados de outros materiais com efeito barocalórico gigante ou grande, encontrados na literatura científica. Nessa comparação, a borracha natural vulcanizada superou todos seus “concorrentes”.
O efeito barocalórico da borracha natural vulcanizada também apresentou vantagens com relação a efeitos calóricos gerados a partir da aplicação de um campo magnético ou elétrico, por exemplo – efeitos que também são estudados com vistas a aplicações em refrigeração sólida. De fato, enquanto pressões relativamente baixas geraram um efeito calórico gigante na borracha, para gerar efeitos magnetocalóricos e eletrocalóricos significativos são necessários campos bem altos e materiais muitíssimo mais caros que a borracha natural, explica Carvalho.
Além de reportar pela primeira vez na literatura científica o efeito barocalórico gigante da borracha natural vulcanizada, o artigo da ACS Macro Letters traz mais uma contribuição científica importante. “A segunda grande contribuição é o fato de ter sido mostrada, pela primeira vez, a influência da transição vítrea de um polímero no efeito barocalórico”, afirma Carvalho. A transição vítrea é uma mudança reversível que ocorre na borracha e outros materiais em determinada temperatura. Acima da temperatura de transição, as cadeias poliméricas da borracha adquirem mais mobilidade, tornando o material “borrachoso” (mais flexível e menos duro). Abaixo dessa temperatura, a mobilidade das cadeias diminui e se torna “vítreo” (rígido e relativamente quebradiço). No artigo da ACS Macro Letters, os autores propuseram que as variações da temperatura e entropia que derivam da compressão e descompressão da borracha natural estão relacionadas ao calor gerado pela mobilidade das cadeias poliméricas. A compressão da borracha levaria a uma diminuição de mobilidade, que explicaria a existência de variações de temperatura muito menores no estado vítreo do que no borrachoso.
Quanto à aplicação da descoberta, o mecanismo de esfriamento baseado no efeito barocalórico de materiais em estado sólido pode parecer simples, mas transferi-lo a um dispositivo real não é trivial. “O efeito barocalórico em diferentes materiais tem sido estudado há vários anos, mas ainda não há um protótipo de refrigerador barocalórico patenteado ou descrito em um artigo, pelo que sabemos”, diz Carvalho. “Apesar das dificuldades, pensamos em desenvolver um protótipo em conjunto com pesquisadores do Departamento de Engenharia Mecânica da Universidade Estadual de Maringá (UEM)”, anuncia.
História do trabalho
A ideia do trabalho reportado na ACS Macro Letters se originou em meados de 2016 no CNPEM, quando o pesquisador Alexandre Carvalho, o pós-doc Nicolau Bom e o estudante Érik Oda Usuda se depararam com um artigo sobre o efeito elastocalórico da borracha natural (a variação de temperatura induzida pelo esticamento do material) publicado na Applied Physics Letters. O trio científico se perguntou então se um efeito equivalente aconteceria se a borracha fosse comprimida em vez de esticada. “Mais especificamente, queríamos saber o que ocorreria em uma compressão confinada”, detalha Carvalho. Eles realizaram os primeiros testes com equipamentos simples: uma célula de pressão desenvolvida por eles mesmos e uma prensa hidráulica manual para aplicar diferentes cargas. Para preparar a amostra, a equipe utilizou uma borracha escolar velha transformada em tarugo para ser encaixada na célula de pressão. “Os resultados foram animadores, pois observamos que a borracha aquecia e resfriava cerca de 10 graus a partir da temperatura ambiente em uma variação de pressão relativamente baixa”, conta Carvalho. No início de 2017, o doutorando William Imamura e o pós-doc Lucas Soares de Oliveira Paixão se juntaram ao grupo e também se dedicaram a estudar o efeito barocalórico da borracha natural vulcanizada e de outros polímeros. “Melhoramos nosso aparato experimental e nossa metodologia, culminando nos resultados publicados na ACS Macro Letters, que farão parte da dissertação de mestrado de Érik Usuda”, diz Carvalho, que além de coordenar o LMiC, é coordenador da linha de luz XRD1 do LNLS. Nessa linha, que será transferida ao Sirius (a fonte de luz síncrotron de última geração em construção no CNPEM), poderão ser realizados estudos de propriedades termomecânicas de polímeros concomitantemente a análises com radiação síncrotron, anuncia Carvalho.
A pesquisa foi realizada com financiamento da Fapesp, CNPq, Capes, LNLS e CNPEM.