Quando demos a partida na construção do LNLS, em 1986, e muito antes disto, na sua “pré-história”, havia já a intenção de envolver a indústria nacional na construção dos equipamentos. Olhando de 2015, é difícil imaginar o que era a indústria brasileira em 1985. Ainda é mais difícil conceber que, em alguns setores, entre eles o metal-mecânico, ela era mais sofisticada do que é hoje. A abertura da economia brasileira, necessária, porém conduzida de forma atabalhoada e amadora pelo Governo Collor, acabou com boa parte da indústria mais sofisticada que havia no País então. De todos os materiais necessários para construir os aceleradores, dois se destacavam por seu peso (literalmente): aço e cobre. Para os imãs e câmaras de vácuo necessitávamos de aço e para as bobinas dos eletroímãs, de cobre OFHC de baixo conteúdo de oxigênio.
Lembro-me da visita feita a nosso galpão, por um especialista em ultra-alto vácuo da Balzers que nos declarou, de forma arrogante, que “é impossível fabricar câmaras de ultra-alto-vácuo” com o aço brasileiro. “Vocês vão ter de importar.” Não é necessário dizer que isto foi um belo incentivo para que procurássemos um fornecedor brasileiro para nossas necessidades. Ricardo e eu compartilhávamos um saudável desprezo por este tipo de especialista. Acho que nós dois pensávamos, sem falar em voz alta, quando ouvíamos declarações deste tipo, mais ou menos a mesma coisa: “Ah é! Não dá? Você vai ver!”. Para a fabricação dos ímãs e das câmaras de vácuo, havia duas perguntas não respondidas. Haveria no Brasil aço com as características requeridas? E o método de corte a laser que pretendíamos utilizar não afetaria negativamente as propriedades magnéticas do material nas suas bordas? Ninguém tinha utilizado esta técnica para fabricar eletro-ímãs de precisão até o LNLS considerá-la como uma opção, dadas as condições muito especiais que enfrentávamos. Quando começamos, ninguém tinha as respostas para estas perguntas. A experiência mostrou que havia o aço necessário no Brasil, tanto para os ímãs (SAE1006, adquirido no mercado nacional e relaminado pela Mangels) quanto para as câmaras (AISI 316L), e que o corte a laser era uma técnica viável e muito flexível para a produção de lotes relativamente pequenos de eletro-ímãs*. Isto, naturalmente, não aconteceu da noite para o dia. Eventualmente, a longa história do desenvolvimento dos processos para os aços, por exemplo, no caso das câmaras de vácuo, de limpeza e soldagem, e no caso dos ímãs, da melhoria das propriedades magnéticas, poderia muito bem ser contada.
Uma outra história, mais divertida, é a do cobre para as bobinas dos eletro-ímãs. O CERN nos havia recomendado a empresa finlandesa Outokumpu, que era a fornecedora deles. É claro que, com esta recomendação, estávamos tranquilos quanto à qualidade do produto finlandês. Mas, eu não estava satisfeito em ter de importar cobre. Uma pesquisa revelou a existência em São Paulo da Termomecânica, de propriedade de Salvador Arena. Consultados os meus “especialistas”, todos foram unânimes em dois pontos: tratava-se de uma empresa da melhor qualidade e de um empresário excepcional, dos mais dedicados ao desenvolvimento tecnológico de seus produtos, apenas um tantinho temperamental. Achei que ele se encaixava no perfil de um fornecedor potencial para o LNLS e lá fui eu explicar-lhe o projeto do LNLS e suas necessidades. Fui muito bem recebido, ouvi durante algumas horas uma exposição sobre o belo programa educacional que era o seu projeto do coração, pude expor nosso projeto brevemente, mas neste, Arena foi taxativo – “Neste negócio não me meto. Não quero nada com o governo. Não vai dar certo. Esqueça, vocês não vão conseguir. A Termomecânica não vai fornecer para vocês.” (Coloco entre aspas o texto, com a ressalva de que podem não ter sido as palavras exatas de Arena, mas o sentido é o mesmo.)
Confesso que fiquei decepcionado, mas a conversa não foi em vão. Serviu para eu entender como ele pensava e para traçar uma estratégia para dobrá-lo. Importamos, com a ajuda do CERN, uma tonelada de cobre OFHC da Outokumpu (uma fração do que precisaríamos) nas especificações necessárias para as bobinas dos dipolos do anel. O cobre fornecido pela Outokumpu foi OFHC/OFE – 99,99 % mínimo Cu com até 0,0010 % max de oxigênio. Assim que o material chegou, liguei para Salvador Arena para dizer-lhe: “O Sr. não quis nos fornecer, importei da Outokumpu, sua concorrente.” O que se ouviu do outro lado da linha não pode ser reproduzido na riqueza dos palavrões nos quais Arena era pródigo. Por baixo, fui chamado de moleque, e ele me assegurou nos termos mais enfáticos que nunca tinha dito que a Termomecânica não iria nos fornecer o cobre de baixo conteúdo de oxigênio que precisávamos. E praticamente ordenou que eu voltasse lá imediatamente com as especificações que eles desenvolveriam o material para nós. E foi o que fizeram. Graças à estratégia da importação da Outokumpu, o cobre fornecido pela Termomecânica está até hoje cumprindo seu papel com galhardia não apenas nos dipolos, mas em todos os eletro-ímãs do LNLS (certificado OFHC/OF – 99.95 % mínimo Cu + Ag com até 0,0010 % max de oxigênio, mas com qualidade OFE). Aqui também, há uma longa história de desenvolvimento feito pela equipe do LNLS dos materiais até o produto acabado. Mas, isto fica para outra ocasião.
Prof. Cylon Gonçalves da Silva
*Agradeço a Guilherme Franco, Osmar Bagnato e Ricardo Rodrigues, da equipe do LNLS, por me refrescar a memória sobre os tipos de aço empregados, bem como os detalhes técnicos do cobre OFHC.
[Artigo enviado para publicação no Boletim da SBPMat pelo professor Cylon Gonçalves da Silva, primeiro diretor do LNLS (1986-1998). Para mais informações sobre a implantação do LNLS, convidamos os leitores a acessarem a reportagem “A construção, no Brasil, da fonte de luz síncrotron e de suas primeiras estações experimentais“]
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