Ao longo de sua trajetória de cientista, Sergio Mascarenhas Oliveira, hoje com 85 anos de idade, fez importantes contribuições ao desenvolvimento da pesquisa científica, principalmente no Brasil e, em particular, na área de Materiais. Partindo da Física do Estado Sólido, pilar da Ciência de Materiais, transitou por várias áreas do conhecimento, como a Biofísica Molecular e a Física Médica, entre muitas outras.
Guiado pela ideia de exercer a função social do cientista, ligada ao desenvolvimento social, Mascarenhas promoveu avanços na ciência e tecnologia com significativo impacto em setores como agropecuária, saúde e educação.
Um exemplo que ilustra o trabalho do professor Mascarenhas é o recente desenvolvimento de um sistema minimamente invasivo para medir a pressão intracraniana. A motivação surgiu quando o professor recebeu, em 2005, o diagnóstico médico de hidrocefalia e, durante o tratamento, teve que se submeter a perfurações do crânio para medir essa pressão. A partir desse momento, junto a estudantes e empresas, e com apoio de diversas entidades, realizou uma série de estudos, os quais resultaram num sistema minimamente invasivo, mais barato e aplicável a um vasto universo de pacientes.
Mascarenhas nasceu no Rio de Janeiro. Na graduação, entre 1947 e 1951, estudou Física na Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO) e Química na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Após um período como pesquisador em universidades dos Estados Unidos, decidiu voltar ao Brasil. No país cumpriu papeis muito importantes na criação e coordenação de algumas instituições como o Instituto de Física e Química da USP de São Carlos, a Universidade Federal de São Carlos (UFSCar) e seu curso de Engenharia de Materiais (o primeiro da América Latina), a unidade de instrumentação da Embrapa, o Instituto de Estudos Avançados de São Carlos da USP, o qual coordena até hoje, e seu Programa Internacional de Estudos e Projetos para a América Latina.
Sérgio Mascarenhas é professor titular, atualmente aposentado, da Universidade de São Paulo (USP). Foi professor visitante nas Universidades de Princeton, Harvard e MIT, nos Estados Unidos; na Universidad Nacional Autónoma de México, no Institute of Physical and Chemical Research do Japão, na London University (Reino Unido), e, na Itália, no Abdus Salam International Centre for Theoretical Physics e na Università di Roma.
Orientou cerca de 50 teses de mestrado e doutorado e publicou cerca de 200 artigos e livros. Entre muitos prêmios e distinções, podem ser citados a Grã-Cruz da Ordem Nacional do Mérito Científico (Brasil, Presidência da República); os prêmios Guggenheim e Fulbright (Estados Unidos); Yamada Foundation (Japão), Fundação Conrado Wessel 2006 na modalidade de Ciência Geral, e distinções de professor emérito e doutor “honoris causa” de várias universidades do Brasil e do exterior. Em 2012, foi a vez de a SBPMat lhe outorgar uma distinção, a palestra memorial Joaquim Costa Ribeiro. Mascarenhas é membro da Academia Brasileira de Ciências, da American Physical Society, membro fundador da Academia Latino Americana de Ciência e da Academia de Ciências do Estado de São Paulo.
A seguir, a transcrição da entrevista que o professor Mascarenhas nos concedeu às 20:30 horas do dia 26 de março, após o término de uma reunião de trabalho. O cientista nos falou um pouco sobre sua trajetória, a função social do cientista e sua mensagem para os mais jovens.
As principais contribuições à ciência, tecnologia e inovação, principalmente na área de Materiais e no Brasil.
Como eu comecei a fazer ciência no Brasil num momento em que não havia, praticamente, Materiais, eu tive a sorte de poder introduzir esse tipo de pesquisa, tanto a aplicada quanto a básica. Então eu diria que, do ponto de vista institucional, uma contribuição importante foi a criação do Grupo de Física da Matéria Condensada no Instituto de Física da USP em São Carlos, na década de 1960. Graças a um intercâmbio muito forte entre a USP São Carlos, e as universidades de Princeton e Carnegie Mellon nos Estados Unidos, e também grupos da Inglaterra e da Alemanha, principalmente de Stuttgart, nós conseguimos estabelecer um programa de formação de pesquisadores bastante intenso, o qual dura até hoje.
Depois, tive ocasião de ser o primeiro reitor da UFSCar, e aí eu propus a criação do curso de Engenharia de Materiais. Essa foi a primeira carreira de Engenharia de Materiais da America Latina e teve um grande sucesso, tanto do ponto de vista acadêmico como empresarial. Essas foram duas contribuições institucionais que levaram à formação de uma verdadeira escola no Brasil de Ciência e Engenharia de Materiais.
Do ponto de vista da pesquisa, há contribuições que eu fiz com a colaboração de muitos professores jovens e seniores. Primeiramente, as pesquisas ligadas a defeitos em cristais, como cristais iônicos com centro de cor, através de radiação ou crescimento cristalino com impurezas. Esses cristais iônicos que apresentam centros de cor foram usados posteriormente para memórias ópticas. Isso resultou de uma colaboração bastante forte do nosso grupo de São Carlos com os laboratórios RCA de Princeton e a Bell Labs, nos Estados Unidos.
Outra área que tivemos a satisfação de ver desenvolvida é a de eletretos, materiais dielétricos que podem manter uma polarização elétrica por muito tempo, até 100 anos, como é o caso do teflon. Esses eletretos, então, foram estudados principalmente pelo grupo orientado pelo professor Bernard Gross, que eu tive a felicidade de trazer para São Carlos. Ele trabalhou com um grupo do MIT e da Bell Labs e desenvolveram o famoso microfone de eletretos que foi usado em todos os celulares, telefones e muitas outras aplicações. Essa foi uma aplicação que ganhou um status global de um produto que praticamente nasceu em São Carlos.
Depois, a minha extensão desse conceito de eletretos para os materiais biológicos levou ao conceito de bioeletretos, que são materiais biológicos também capazes de manter uma polarização elétrica por longo tempo. Esse conceito de bioeletretos eu acho que foi uma das contribuições que eu tive a ventura de poder fazer, e hoje em dia é globalmente conhecido. Tem um livro de eletretos publicado pela editora Springer [MASCARENHAS, S. 1979 . Bioelectrets: electrets in biomaterials and biopolymers. Electrets – Topics in Applied Physics., Springer-Verlag . vol. 33 , p. 341 – 346] em que, num dos capítulos, eu discuto essa noção dos bioeletretos. O conceito vale para proteínas, DNA, polissacarídeos. Eu acho que esse conceito tem uma importância grande por ter um significado na Biologia e na Medicina.
Finalmente passamos a trabalhar com conceitos de Materiais também na área de Biofísica Molecular e Física Médica. Isso decorreu do fato de eu ter sido convidado pelo prêmio Nobel Abdus Salam para dirigir em Trieste (Itália) uma série de cursos, durante doze anos, nessas duas áreas. Essas contribuições foram capazes de disseminar a ideia e a carreira de Física Médica em muitos países em desenvolvimento na África, Ásia e América Latina. Essa foi, então, uma das contribuições das quais levo grande satisfação.
Mas tudo isso depende de gente, principalmente de jovens. Eu sempre digo que professor só é bom se tem alunos melhores do que ele. Eu tive a felicidade de ter alunos melhores do que eu, que foram além e deram continuidade à escola de Física da Matéria Condensada, de Materiais, como é o caso do professor Roberto Faria, que hoje em dia é presidente da SBPMat e trabalha numa área de fronteira, a de polímeros condutores – uma revolução na área de eletrônica, energia, farmacologia etc.
As ocupações atuais e as novas fronteiras do conhecimento.
Ultimamente eu tenho me preocupado em olhar os fenômenos sob o ponto de vista dos fenômenos complexos, nos quais você tem um grande número de variáveis e fenômenos não lineares. São exemplos: o cérebro, a Internet, a origem da vida. Então, a engenharia de sistemas complexos para Materiais, ela da origem a uma série de efeitos importantíssimos que vão ser gradualmente explorados. Essa questão de sistemas complexos permeia a engenharia, biologia, educação, agronegócio, que uma das áreas importantes para a humanidade para a produção de alimentos, a questão da biomassa, que é um problema importantíssimo para a produção de energia, a compreensão do cérebro.
Então acho que a minha função agora é chamar a atenção dos jovens e dos centros de pesquisa de países em desenvolvimento sobre a importância que tem o estudo de sistemas complexos, que exige muita modelagem computacional, o entendimento do que é inteligência artificial, teoria dos jogos, sistemas caóticos, fractais… E a pesquisa em materiais complexos é de uma importância central.
Outra área que eu acho que vai progredir mais, e é uma revolução anunciada, é a dos biomiméticos. Você olha na natureza biológica que trabalhou durante milhões de anos para produzir material numa concha, osso, pêlo, órgão e aprende como houve a evolução das propriedades desse material. É como se a gente abrisse um grande tesouro biológico do conhecimento.
A função social do cientista
Eu acho que a função social do cientista ela é essencial por dois motivos. Primeiro, se você olhar a história da humanidade, todas as grandes evoluções do pensamento humano partiram de ciência básica que se transformou em tecnologia. É importante o cientista para gerar, não só a voz da sociedade, mas uma espécie de autoconsciência da sociedade que se consolida numa política científica, tecnológica, educacional. Eu acho que um dos melhores exemplos disso é olhar a convergência entre ciência e tecnologia. Quando se inventou o motor elétrico do Faraday, demorou uns 40 anos para ter plena utilização dele. Hoje em dia você não pode nem imaginar o que aconteceria com a sociedade se não houvesse motor elétrico. Quando foi inventada a energia nuclear, em 10 a 15 anos você já tinha suas aplicações. E no mesmo ano em que foi inventado o laser, já foi aplicado. Então a convergência entre ciência e tecnologia é enorme. Isso significa a importância que o cientista tem e a pesquisa tem para fazer o desenvolvimento econômico que leva ao desenvolvimento social que leva ao desenvolvimento cultural que leva ao que o Charles Percy Snow disse que é a terceira cultura. No livro dele “The two cultures”, ele mostrou que, na época da segunda grande guerra, havia uma distância muito grande entre humanismo e ciência e tecnologia, havia até falta de respeito entre esses dois atores do desenvolvimento humano. Mas essa distância tem que convergir numa terceira cultura em que você tenha uma visão muito mais holística, não só do homem, mas também do universo, como no exemplo da teoria da Gaia de James Lovelock.
Então, para o desenvolvimento social, a pesquisa é a única arma que o homem tem para trazer a humanidade a um estágio de respeito à natureza, ao próprio homem e a sua função no cosmos. Eu acho que se a gente não tiver universidade que faça pesquisa e extensão, leve suas pesquisas para fora, a gente não tem a formação desse ciclo virtuoso que transforma conhecimento em qualidade de vida, em novas possibilidades para o homem, para esse homem sapiens sapiens que saiu da caverna e foi para o espaço.
Mensagem para os leitores mais jovens, em início de carreira.
Eu acho que essa carreira de Ciência de Materiais, Engenharia de Materiais, Biomateriais, Materiais Complexos é um mundo enorme que está a disposição do futuro da humanidade, mas esse futuro da humanidade depende do futuro desse jovem de hoje que pode enfrentar esses desafios e ter o grande prazer de construir uma humanidade mais virtuosa através das pesquisas com Materiais. Se você pensar o que significam os materiais para a vida humana, até numa visão mais direta da felicidade e do bem-estar, nossa vida depende de materiais. A nutrição depende de materiais, a comunicação, a saúde, a fabricação de todos os equipamentos, máquinas, robôs, navios, satélites. Então os materiais são realmente uma grande fonte de inovação, de riqueza. O jovem que escolhe essa carreira está escolhendo trabalhar no futuro da ciência e da tecnologia.