A gente pode chama-la de lobista; ela não leva a mal. Muito pelo contrário. Mariana Mazza, 41 anos, lobista de CT&I, acredita que deveria haver mais profissionais como ela acompanhado as ações do Poder Executivo e Legislativo com impacto em CT&I e negociando prioridades com os parlamentares para o benefício coletivo de determinadas áreas de pesquisa e inovação. Sob nomes como “congressional fellow” ou “advocacy dashboard”, esse trabalho tem mais visibilidade em sociedades científicas de outros países, como os Estados Unidos, mas também existe no Brasil.
Jornalista formada pela Universidade de Brasília, Mariana trocou, no final de 2016, sua rotina de repórter pela de assessora parlamentar da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC), sociedade à qual a SBPMat é afiliada. Por sua vez, a SBPC é uma das oito entidades que coordenam a ICTP.br, iniciativa que reúne esforços de instituições nacionais relevantes para CT&I em ações conjuntas no Congresso Nacional.
Em entrevista ao Boletim da SBPMat, Mariana conta quais são suas atividades diárias como assessora parlamentar da SBPC, quais foram as principais vitórias conquistadas e os desafios para o futuro imediato, em uma época de escassez de recursos e pandemia.
Boletim da SBPMat: Em que consiste o seu trabalho? Quais as atividades que você realiza em seu dia-a-dia de assessora parlamentar?
Mariana Mazza: As atividades que realizo para a SBPC têm um escopo mais amplo do que simplesmente falar com deputados e senadores, como quem não está familiarizado com o Congresso Nacional pode pensar. É algo bastante dinâmico, na verdade. Existem atividades básicas como avaliar as agendas das comissões da Câmara e do Senado e triar tudo que possa ter impacto em CT&I. Como a SBPC tem centenas de associadas em múltiplas áreas, esse é um trabalho bem amplo. Mas a parte mais crítica é identificar e avaliar ações políticas que possam ser repercutidas no Congresso Nacional. Por exemplo, temos feito um trabalho bastante minucioso na recuperação do orçamento para CT&I e P&D. Isso exige que eu acompanhe, desde o início, a proposta orçamentária, calcule as variações em relação aos orçamentos anteriores e sugira estratégias à diretoria da SBPC. Traçadas as estratégias, começa a parte de negociar com os gabinetes emendas que coloquem mais dinheiro nos projetos, o que significa redigir essas propostas e explica-las aos assessores de cada gabinete. Para se ter uma ideia, apenas para o Orçamento de 2020, fui pessoalmente a mais de 300 gabinetes da Câmara e do Senado. E isto é apenas um pedaço da atuação que fazemos. Basicamente qualquer ação do Executivo que possa ser revertida no Congresso passa por uma ação da assessoria em algum aspecto. E também há os projetos de lei de origem do próprio Legislativo que afetam a comunidade científica e muitas vezes precisam de reparo. Faço a intermediação dos representantes da SBPC com os relatores desses projetos e membros das comissões que possam aperfeiçoar a proposta. Também organizamos exposições de divulgação científica, como a do Centenário do Eclipse de Sobral no ano passado, que foi muito bem recebida pelos visitantes do Congresso. E ainda há o trabalho de ampliar o conhecimento da própria SBPC pelos parlamentares. Como a SBPC é uma entidade muito atuante nas discussões políticas importantes para o País, trabalho não falta para a assessoria parlamentar.
Boletim da SBPMat: Com quem você interage? Como você escolhe com quem interagir?
Mariana Mazza: Depende do assunto que estamos tratando. Os parlamentares têm seus nichos de atuação. Então, se o assunto é meio ambiente, há um grupo de parlamentares aberto ao diálogo na linha da atuação da SBPC. Se é inovação, é outro grupo. Orçamento, são outros parlamentares. E assim vai. Mas conforme a ciência brasileira foi aumentando sua presença no Congresso Nacional, fomos ampliando a nossa rede de parlamentares aliados à CT&I, que procuramos nos assuntos mais estratégicos independentemente da área mais específica, digamos assim. Essa teia de parlamentares amigos da ciência foi tecida de várias formas. Há os aliados históricos, que já apoiam a ciência há anos, e aqueles que foram se identificando com as pautas que encampamos, compreendendo melhor como a ciência funciona e suas implicações na vida dos brasileiros. Lista-los seria um problema porque acabaria deixando muitos de fora. Após as eleições de 2018, perdemos muitos deputados e senadores alinhados com a pauta científica. Mas felizmente temos conseguindo abrir um espaço novo no Congresso, conseguindo apoio de muitas lideranças usando a estratégia de defender pautas específicas. Na retirada do FNDCT da PEC dos Fundos, por exemplo, conseguimos articular junto com as lideranças e outras entidades do setor um apoio suprapartidário de defesa da preservação dos recursos da ciência. É muito gratificante quando conseguimos demonstrar que a ciência não é uma pauta ideológica, típica de esquerda ou de direita. É uma pauta em benefício de todos. Os políticos estão começando a ver isso.
Boletim da SBPMat: Você tem formação em Comunicação Social – Jornalismo e experiência como jornalista de TV. Quais as competências que você utiliza neste trabalho de assessoria parlamentar?
Mariana Mazza: Sim, sou jornalista de formação. Antes de entrar para a SBPC, trabalhei no Grupo Bandeirantes como editora e colunista. Na carreira de repórter, me especializei na área de infraestrutura, que na verdade foi o que me levou à Band, como colunista de Telecomunicações. É de conhecimento público que o setor de infraestrutura é bastante ativo no lobby político, ainda que muito da percepção social seja na via negativa. Grandes prestadores de serviços – como teles, distribuidoras de energia, produtores de combustível, companhias aéreas… –, empreiteiras e grupos de mídia, que compõem a agenda de um repórter de infra, são extremamente ativos no lobby. Acompanhar ao longo de mais de uma década a operação desses setores no Congresso Nacional me ensinou muito sobre como funcionam as negociações setoriais no parlamento. Sobre que tipo de argumentos funcionam com os políticos, como aborda-los e como apresentar uma agenda setorial.
Boletim da SBPMat: Seu trabalho não é comum no Brasil no ambiente científico, certo? Você se inspira ou aprende de profissionais de outras áreas ou de outros países?
Mariana Mazza: Não é tão incomum assim, na verdade. Entidades como Fiocruz e Embrapa, que pertencem ao Sistema Nacional de Ciência, Tecnologia e Inovação (SNCTI), são muito profissionais na atuação no Congresso Nacional, com equipes dedicadas apenas à negociação com os parlamentares e análise das ações no Legislativo. E há importantes entidades civis que fazem um trabalho muito diligente no parlamento, defendendo e orientando as bancadas em setores específicos. O Instituto Socioambiental (ISA), por exemplo, tem uma atuação muito importante na pauta ambiental. Acho que o que acontece é que esse é um trabalho “nas sombras”, na maioria das vezes. Quando funciona, parece que sequer foi feito. O lobby ainda é muito malvisto no Brasil, porque normalmente só temos conhecimento dele quando é usado em benefício de algum setor em detrimento do benefício coletivo. Isso faz com que os lobistas se disfarcem com outros nomes no Brasil, “assessores parlamentares”, “diretores de relações institucionais”, e por aí vai. Isso ajuda a ocultar o mau lobby, digamos assim, mas também acaba tirando a visibilidade do trabalho republicano de negociação de prioridades com o parlamento. Acredito que todos os setores têm o direito de negociar com os representantes eleitos pela sociedade. É como o trabalho de um advogado. Culpados e inocentes têm direito à defesa. Tenho o privilégio de advogar em defesa de um setor que sinceramente acredito ser benéfico para o desenvolvimento de qualquer Nação. Mas quando se trabalha com política, é preciso ter em mente que há sempre a perspectiva oposta à nossa. Temos que encarar as negociações sem sentimentalismos. É preciso encontrar um campo comum. Ironicamente, acabo me inspirando mais nos lobbies empresariais, considerados “maus” pela sociedade, simplesmente porque eles são eficientes em sua atuação. Conheci muitos lobistas como repórter, que se tornaram próximos ao longo dos anos, e aprendi muito com eles.
Boletim da SBPMat: O que é a Iniciativa para Ciência e Tecnologia no Parlamento (ICTP.br)? O seu trabalho se insere nessa iniciativa?
Mariana Mazza: A ICTP.br é uma iniciativa para unir esforços das entidades nacionais relevantes para CT&I em ações conjuntas no Congresso Nacional. Ela surgiu da ideia do professor Ildeu de Castro Moreira, que preside a SBPC, de criar um observatório do Legislativo. A ideia se desenvolveu em parceria com o ex-ministro Celso Pansera, que detinha mandato de deputado federal quando começamos a costurar o projeto em 2018. Hoje, Pansera cuida da secretaria executiva da ICTP.br, articulando as grandes pautas de impacto em CT&I com as lideranças partidárias em uma agenda de prioridades que definimos em conjunto entre as oito instituições que compõem a coordenação da ICTP.br: SBPC, ABC, Andifes, Consecti, Confap, Forúm dos Secretários de CT&I, Conif e Confies. Como assessora parlamentar da SBPC, tenho uma atuação conjunta com as agendas da ICTP.br, mas nem todas as ações se sobrepõem. Há diversas pautas que tenho que agir e que não estão na agenda da Iniciativa, por serem específicas. Por outro lado, o estabelecimento dessa operação coordenada aliviou a atuação nas pautas mais pesadas de âmbito nacional, que antes da ICTP.br recairiam de forma desarticulada sobre os assessores. Hoje, há uma ação muito mais organizada nessas pautas de alto impacto, com o ex-ministro Pansera à frente das articulações políticas mais amplas, ficando para os assessores como eu o trabalho de base da construção de argumentos e auxílio dos gabinetes na concretização dos acordos firmados. Ainda é um trabalho em construção, mas já temos tido grandes resultados na melhoria da interação entre as entidades e vitórias no Congresso.
Boletim da SBPMat: Quais foram as conquistas conseguidas até o momento com ajuda do seu trabalho?
Mariana Mazza: São muitas. Até porque a maioria, como disse antes, sequer chega a ganhar luz porque acaba sendo um trabalho de apagar pequenos incêndios. Mas nas pautas de repercussão geral, temos tido muito sucesso na agenda orçamentária, ainda que hoje essa seja uma ação mais de contenção de perdas do que de aumento dos recursos para CT&I. Posso dizer com segurança que a situação financeira do setor seria muito mais precária não fosse o trabalho das assessorias e das diretorias das entidades em conter a sangria. Ainda nas grandes pautas, a ação no Congresso foi o que garantiu os recursos faltantes para o pagamento das bolsas do CNPq em 2019. Que manteve a existência da Finep, ao bloquear a iniciativa de transferir a secretaria-executiva do FNDCT para o MCTIC. Que salvou o FNDCT da possível extinção ao retira-lo da PEC dos Fundos. Que impediu o contingenciamento dos recursos da ciência no MCTIC em 2020. Que protegeu também do contingenciamento todo o orçamento da Embrapa, Fiocruz, IBGE e Ipea neste ano. Isso sem contar as inúmeras denúncias que a SBPC faz em suas notas públicas e cartas abertas que têm enorme repercussão no Congresso, contendo o avanço de medidas nocivas para a ciência brasileira. O crítico desse tipo de trabalho, como você pode ver pelos exemplos que citei, é que atualmente estamos sendo obrigados a agir mais na contenção do que na propositura. É importante lembrar, por exemplo, que foi a atuação da ciência no Congresso que deu corpo ao Marco Legal de CT&I, uma operação que durou anos de dedicada negociação dos assessores na época.
Boletim da SBPMat: Quais têm sido os principais desafios ou dificuldades?
Mariana Mazza: A principal dificuldade é que temos muitas entidades na área científica, mas poucas com atuação política em Brasília. Com isso, perde-se muitas oportunidades de ações específicas, que um assessor como eu, de uma entidade nacional, não tem como acompanhar com a dedicação necessária. Seria muito positivo se as associações e entidades civis que não têm atuação no Congresso passassem a colocar isso em suas agendas. Mas é preciso entender que o parlamento funciona com pautas concretas. Atuar no Congresso na busca da “defesa de CT&I” pura e simplesmente – isso vale pra qualquer setor, na verdade –, torna-se frustrante muito rapidamente. Porque os parlamentares lidam com dezenas de temas ao mesmo tempo e, por isso, são pragmáticos. É preciso saber o que se quer antes de pisar no Congresso Nacional. O desafio é que estamos em um momento político e econômico de profunda retração nos investimentos públicos. E o setor de CT&I é um setor que custa caro na visão de muitos parlamentares, que desconhecem toda a vasta rede de pesquisa brasileira e seus frutos ao longo da história. Ainda que tenhamos avançado muito nos últimos anos, a ciência ainda é vista por muitos no Congresso como de baixa repercussão política no eleitorado desses parlamentares. E aí perdemos apoio para pautas consideradas por eles de maior apelo social. Por isso, quanto maior é a presença das entidades científicas no parlamento, maior o espaço para que os parlamentares descubram os benefícios da ciência brasileira até mesmo para suas agendas políticas. Temos visto este caminho se abrindo. A meta de todos nós é que o estímulo à ciência seja naturalizado no Congresso Nacional. As últimas vitórias que obtemos neste ano mostram que estamos no caminho certo, mas ainda há muito a fazer, como passarmos de uma pauta apenas reativa para a retomada das pautas propositivas. Mas, é como a célebre frase de Bismarck: “A política é a arte do possível”. No momento, o possível é impedir maiores retrocessos.
Boletim da SBPMat: Neste novo e difícil cenário, marcado pelo avanço da pandemia de Covid-19 no Brasil, verbas não liberadas, orçamentos recortados e diversas incertezas e instabilidades, quais são seus planos de ação para os próximos tempos?
Mariana Mazza: Estamos muito preocupados com a pouca atenção dada à ciência pelo governo nos planos de combate ao coronavírus. Para reparar o baixo orçamento voltado à pesquisa nesta área, já estamos negociando com parlamentares aumentos nos recursos usando os instrumentos orçamentários enviados pelo Poder Executivo. Também já estamos nos preparando para trabalhar na elevação das verbas de CT&I e P&D no plano emergencial anunciado pelo governo federal para mitigar os efeitos econômicos da pandemia. Entendemos que investir em ciência, assim como têm feito outros países, é fundamental também para a economia nacional e estamos em diálogo cotidiano com os gabinetes mais próximos traçando estratégias de ação. Uma das nossas grandes batalhas, dentro e fora do Congresso Nacional, tem sido o fim da captura dos recursos do FNDCT pela Reserva de Contingência. Esse é um mecanismo fiscal que basicamente está retirando ilegalmente o dinheiro da ciência para tão somente cumprir metas fiscais do governo. Queremos, inclusive, que essa reserva seja liberada agora, em sua totalidade, para o combate ao coronavírus e fomento da ciência em geral, reconhecendo seu papel na recuperação econômica da recessão que certamente atingirá o Brasil após superada a pandemia. No momento, toda a energia está voltada para assegurar a presença da ciência nos planos emergenciais e bloquear qualquer ação que prejudique a ciência neste período de crise.