Sócio da SBPMat escreve artigo de revisão a convite da Materials Horizons sobre técnica desenvolvida em seu grupo de pesquisa para obtenção de filmes finos.


Prof Aldo Zarbin
Prof Aldo Zarbin

Em 2010, o professor Aldo José Gorgatti Zarbin e coautores publicavam o primeiro artigo sobre uma técnica, simples e barata, que permite obter filmes finos de alta qualidade na interface entre dois líquidos imiscíveis, como água e óleo. A rota consiste, basicamente, em dispersar o material que se deseja processar em um dos líquidos e agitar o sistema. Depois disso, se os parâmetros do processo são devidamente controlados, a natureza se encarrega de organizar o material na interface dos líquidos, gerando um filme sólido que pode ser facilmente depositado sobre outros materiais.

A descoberta parecia promissora, e, ao longo da década seguinte, o Grupo de Química de Materiais da Universidade Federal do Paraná (UFPR), liderado por Zarbin, continuou dedicando esforços a entender e dominar o processo, e a testá-lo com diversos materiais, substratos e aplicações. Os resultados foram além do esperado. A “rota interfacial líquido/líquido”, como foi denominada, permite não apenas processar praticamente todos os materiais em forma de filmes, mas também sintetizá-los e modificar sua superfície – tudo em uma mesma etapa, dentro do ambiente “mágico” da interface entre os líquidos.

Em 2020, dez anos depois do primeiro artigo, Aldo Zarbin foi convidado pela Materials Horizons, revista científica da Royal Society of Chemistry com fator de impacto 12,319, a escrever um artigo de revisão sobre esta técnica desenvolvida e otimizada no Brasil. O review foi publicado no início deste ano.

Nesta entrevista, o cientista Aldo Zarbin, que é sócio da SBPMat, fala um pouco sobre as características e possibilidades desta rota de obtenção de filmes finos – materiais cada vez mais demandados em áreas tão diversas como energia e saúde. De fato, a fina espessura e a grande área superficial dos filmes finos permitem controlar as propriedades de um sistema sem modifica-lo substancialmente e sem utilizar grandes quantidades de material.

Aldo Zarbin é professor titular do Departamento de Química da UFPR. É graduado (1990), mestre (1993) e doutor (1997) em Química pela Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP). É fellow da Royal Society of Chemistry e membro titular da Academia Brasileira de Ciências (ABC). Foi presidente da Sociedade Brasileira de Química de 2016 a 2018 e atua como vice-coordenador do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia de Nanomateriais de Carbono. O cientista é autor de mais de 170 artigos científicos. Segundo o Google Scholar, seus trabalhos reúnem mais de 6.800 citações e seu índice h é de 47.

Boletim da SBPMat: – Conte-nos um pouco da história do desenvolvimento da rota interfacial líquido/líquido.

Aldo Zarbin: – Nós vínhamos trabalhando com interfaces entre líquidos imiscíveis desde 2001, na síntese de nanopartículas de prata e ouro pelo chamado método de Brust. Inovamos na época na preparação de nanocompósitos com polianilina, fazendo a polimerização diretamente no sistema bifásico. Na dissertação de mestrado de Rodrigo V. Salvatierra (que se iniciou em 2008 sob minha orientação e teve a co-orientação da Profa. Marcela M. Oliveira, da UTFPR), a proposta era preparar nanocompósitos entre nanotubos de carbono e polianilina em sistema bifásico, e durante o desenvolvimento do trabalho notamos que em determinadas condições experimentais o produto se formava na interface entre os dois líquidos, na forma de uma película extremamente resistente. Descobrimos que esse filme interfacial se mantinha íntegro, e desenvolvemos um sistema simples para removê-lo sobre substratos sólidos, chegando à conclusão de que era possível realizar a deposição sobre qualquer tipo de substrato, e mantendo uma elevada qualidade óptica. Com base nessas evidências experimentais, começamos a trabalhar para compreender o fenômeno e explicar o mecanismo de formação, o que resultou no nosso primeiro trabalho publicado sobre o tema, na Chemistry of Materials da American Chemical Society em 2010. Demonstramos nesse trabalho,  a preparação de diferentes filmes transparentes entre polianilina e nanotubos de carbono, com diferentes proporções entre os componentes, com um forte trabalho de caracterização e a explicação do mecanismo de formação. A partir desse primeiro trabalho, naturalmente passamos a estudar a possibilidade de extensão da técnica para outros materiais, e também visando aplicações reais. A tese de doutorado do Rodrigo V. Salvatierra (que foi agraciada com o Prêmio Capes de tese de 2015 na área de Química) mostrou a primeira aplicação, como eletrodo transparente em uma célula solar orgânica. O trabalho foi publicado na Advanced Functional Materials (Wiley) em 2013, em colaboração com o grupo da Profa. Lucimara S. Roman, do DFIS-UFPR. Em paralelo, várias outros trabalhos de dissertação de mestrado e tese de doutorado foram sendo realizados, para otimizar o processo, para compreender o papel da interface, para ampliar o número de materiais, para demonstrar aplicações diferenciadas, fazendo com que chegássemos aos dias atuais com uma compreensão bem significativa de todo o processo, e demonstrações de aplicação em sensores, células solares, supercapacitores e baterias flexíveis e transparentes, eletrodos transparentes, catalisadores, materiais eletrocrômicos, dentre outras.

Boletim da SBPMat: – Como foi recebida a técnica pela comunidade científica ao longo do tempo?

Aldo Zarbin: – A técnica contou com uma aceitação muito grande na comunidade científica porque possui vários diferenciais. O principal deles é a possibilidade de aliar em um único sistema a preparação de materiais altamente sofisticados, conjuntamente com seu processamento como filme fino. Preparar material já processado é uma vantagem fantástica na área, visando aplicações em diferentes dispositivos e sistemas.  Assim, materiais multicomponentes impossíveis de serem depositados como filme pelas rotas conhecidas, principalmente filmes transparentes, puderam ser preparados a partir dessa técnica. Esse diferencial fez com que os trabalhos fossem aceitos e publicados em revistas de alto impacto, e nos possibilitou o convite para apresentar seminários em diferentes congressos e instituições no Brasil e no exterior, culminando com a publicação desse review a convite na Materials Horizons. Além disso, vários laboratórios mundo afora passaram a utilizar a técnica, e citar os trabalhos desenvolvidos aqui no GQM-UFPR.

Boletim da SBPMat: – Comente em que medida esta rota e os fenômenos a ela associados eram inéditos quando você e seus colaboradores desenvolveram a técnica.

Aldo Zarbin: – De forma resumida, a técnica tira vantagem da alta tensão interfacial entre dois líquidos imiscíveis, para estabilizar sólidos nessa interface visando minimizar essa tensão. Esse processo de estabilização de sólidos em interfaces entre líquidos imiscíveis já é conhecido há muito tempo, desde as chamadas emulsões de Pickering no início do século XX, e foi muito estudado pela comunidade científica nos anos recentes, o que facilitou muito o nosso trabalho. Também vários grupos vinham publicando resultados com a exploração de materiais estabilizados nessas interfaces, como nanopartículas de metais e semicondutores, nanotubos de carbono e diferentes polímeros. O nosso diferencial e ineditismo foi, em primeiro lugar, demonstrar que é possível estabilizar esse sólido de forma a conectar as unidades, dando um caráter de filme homogêneo e estável, e não simplesmente um “aglomerado” de sólido na interface. Isso é controlado por parâmetros experimentais que foram otimizados e descritos por nós; em segundo lugar, fomos os primeiros a demonstrar que esse filme poderia ser retirado da interface líquido/líquido para ser depositado sobre diferentes substratos, ou seja, usar esse fenômeno conhecido como uma técnica de deposição de filmes finos; e finalmente, fomos pioneiros na síntese de materiais multicomponentes diretamente no sistema líquido/liquido, em um processo one-pot e one-step, onde o material multicomponente já é sintetizado e processado na forma de filme.

Boletim da SBPMat: – Aproveite este espaço para divulgar a rota interfacial líquido/líquido, com as suas vantagens e limitações, na comunidade de Ciência e Tecnologia de Materiais, pensando nas pessoas que poderiam utilizá-la.

Aldo Zarbin: – Inicialmente vamos às vantagens da técnica, pensando somente na deposição de filmes, independente do material (ou seja, se partimos de um material já existente, ou se usamos a técnica para inicialmente sintetizar o material): i) extremamente barata; ii) extremamente segura; iii) não requer temperatura, nem pressão, nem aparato experimental sofisticado; iv) permite deposição sobre substratos de qualquer formato, e qualquer composição, plásticos incluídos; v) permite controle de espessura do filme; vi) produz filmes transparentes; vii) produz filmes de alguns materiais que não são possíveis de serem produzidos por técnicas convencionais, sendo especialmente indicado para materiais insolúveis e difíceis de serem tratados, como nanocompósitos por exemplo.
Qualquer aplicação industrial que necessite de recobrimento de peças ou substratos pode ser beneficiada pela técnica, utilizando o material correto para o fim desejado: aplicações anticorrosão; proteção contra ataques químicos; blindagem eletromagnética; dissipação estática; sensores de movimento, pressão, rachadura, gases; recobrimentos inteligentes; janelas eletrocrômicas; aplicações em energia, como células solares, baterias e supercapacitores; como catalisadores etc.

As limitações também estão destacadas no review. A principal delas é que ainda é um método de laboratório, não temos nenhuma experiência com escalonamento, ou seja, um processo que permita a produção em larga escala, o que é um requerimento básico para aplicações industriais.  Um outro problema é que ainda não temos experiência de recobrimento de grandes áreas, em escala de metros quadrados, por exemplo.  Ambas as limitações são problemas de engenharia que acredito que possam ser facilmente contornáveis, com investimento em pesquisa e desenvolvimento na técnica.

 Imagem publicada originalmente em Mater. Horiz., 2021,8, 1409-1432.
Imagem publicada originalmente em Mater. Horiz., 2021,8, 1409-1432.

Referência do artigo de revisão: Liquid–liquid interfaces: a unique and advantageous environment to prepare and process thin films of complex materials. Aldo J. G. Zarbin. Mater. Horiz., 2021,8, 1409-1432. Disponível em formato open access em https://doi.org/10.1039/D0MH01676D.


 


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