Artigo em destaque: Segredos da relaxação estrutural dos vidros finalmente revelados.


Espectrômetro NMR instalado no IFSC-USP.
Espectrômetro NMR instalado no IFSC-USP.

Uma equipe de pesquisadores do CeRTEV (um dos maiores centros acadêmicos de pesquisa em vidros do mundo, localizado em São Carlos, SP) conseguiu realizar a primeira observação experimental das mudanças que ocorrem na estrutura de um vidro durante o relaxamento e a nucleação de cristais, processos que ocorrem na escala nanométrica em todos os vidros e que impactam as suas propriedades.

Vale lembrar que os vidros são materiais amorfos: os seus átomos não se apresentam em um arranjo organizado e periódico. Além disso, estão fora do equilíbrio termodinâmico e, portanto, tendem a buscar estabilidade. Nessa busca, a estrutura dos vidros experimenta rearranjos, os quais tendem ora a deixá-la mais fluida (relaxamento), ora a formar os primeiros cristais (nucleação) para, finalmente, cristalizar.

Além de ocorrerem espontaneamente (ao final de tempos quase infinitos para o ser humano em temperatura ambiente), a relaxação e cristalização dos vidros pode ser muito acelerada por meio do aquecimento do material, que é o método utilizado para produzir vitrocerâmicas. Muito mais resistentes a impactos do que os vidros comuns, as vitrocerâmicas possuem regiões cristalinas dispersas na matriz amorfa. Pelas suas propriedades únicas, são utilizadas em aplicações como janelas à prova de balas e restaurações dentárias.

Compreender as mudanças estruturais dos vidros durante o relaxamento e a nucleação é um problema científico antigo, cuja resolução estava limitada pela ausência de instrumentação adequada. Por isso, para poder realizar este estudo, os pesquisadores do CeRTEV precisaram desenvolver um método adequado. O desafio foi finalmente superado mediante o uso de experimentos baseados na técnica de ressonância magnética nuclear (NMR, na sigla em inglês) combinados com simulações computacionais.

“Nossa pesquisa e a técnica resultante oferecem uma ferramenta valiosa para monitorar e compreender o processo de relaxamento em muitos vidros, bem como os estágios iniciais da nucleação de cristais que ocorrem durante os tratamentos térmicos”, diz Henrik Bradtmüller, autor correspondente do artigo que reporta esta pesquisa na Acta Materialia. “Essas descobertas são cruciais para o design e para o controle de produção de vitrocerâmicas tecnologicamente avançadas e de alto desempenho”, completa o jovem cientista alemão, que atua como pós-doutorando na UFSCar, com bolsa da FAPESP, desde 2020.

A revelação

O trabalho conjunto de cientistas altamente especializados foi uma das chaves para alcançar o sucesso nesta pesquisa. De fato, a equipe de trabalho agregou a ampla experiência de dois pesquisadores seniores: a do professor Edgar Dutra Zanotto (UFSCar) na área de nucleação e cristalização em vidros, e a do professor Hellmut Eckert (IFSC-USP) no desenvolvimento e refinamento da nova técnica de NMR. Foram também fundamentais as contribuições do pós-doutorando Anuraag Gaddam (IFSC-USP), também bolsista da FAPESP, que realizou as simulações computacionais, e de Henrik Bradtmüller, que desenvolveu e aplicou as estratégias de NMR que possibilitaram as observações inéditas.

Os autores do paper. A partir da esquerda: Henrik Bradtmüller, Anuraag Gaddam, Hellmut Eckert e Edgar D. Zanotto.
Os autores do paper. A partir da esquerda: Henrik Bradtmüller, Anuraag Gaddam, Hellmut Eckert e Edgar D. Zanotto.

“Através do uso de simulações de dinâmica molecular, fomos capazes de prever as mudanças estruturais que ocorrem durante o relaxamento do vidro”, diz Bradtmüller. “Já os experimentos de alta sensibilidade com a técnica NMR nos permitiram observar essas mudanças pela primeira vez”, completa. A técnica de NMR permite analisar, na escala atômica, a estrutura de materiais sólidos, inclusive estruturas amorfas.

Para fazer os experimentos, a equipe escolheu o dissilicato de lítio (Li2Si2O5), uma vitrocerâmica bastante utilizada, principalmente em próteses dentárias. Os pesquisadores a aqueceram ao longo de períodos que variaram entre 15 minutos e 60 dias, a 435 °C, temperatura inferior à da transição vítrea desse material, na qual os átomos ganham mobilidade e o vidro começa a ficar mais fluido, sem porém fundir.

As amostras retiradas em diversos momentos do aquecimento foram analisadas por meio dos experimentos de NMR desenvolvidos. Os resultados das análises mostraram, pela primeira vez, o que acontece com a estrutura do dissilicato de lítio durante o relaxamento e a nucleação. “A distribuição dos blocos de construção de rede desse vidro (-Si-O-Si- ) permanece praticamente inalterada”, relata o professor Zanotto, que é diretor do CeRTEV. “Em contraste, os cátions modificadores de rede (Li+), que são muito móveis dentro do material nas temperaturas de recozimento, aproximam-se continuamente de uma configuração estrutural que se assemelha ao estado cristalino”. Com tempo de aquecimento suficiente, explica o professor, os primeiros núcleos de cristal aparecem, seguidos por muitos outros, até chegar à cristalização de todo o material.

A partir de agora, os autores do trabalho esperam que a metodologia desenvolvida seja utilizada para estudar muitos outros materiais vítreos e que esta nova compreensão detalhada de fenômenos fundamentais permita ajustar as propriedades de vitrocerâmicas para melhorar o seu desempenho e ampliar o seu leque de aplicações.

Esta pesquisa foi financiada pela FAPESP.

Centro: Funções de estado Entalpia (H), Entropia (S) e Volume molar (V) em função da temperatura, destacando as diferenças entre líquido, cristal e vidro. Esquerda e superior direita: Fatias de “caixas” de dinâmica molecular, destacando a distribuição de íons Li + (cor laranja) no vidro simulado. Inferior direito: Espectros de RMN mostrando as diferenças entre o vidro preparado por têmpera por fusão, vidro após relaxamento após recozimento por tempos variáveis a uma temperatura 20°C abaixo da temperatura de transição vítrea, vidro contendo núcleos de cristal e vidro totalmente cristalizado.
Centro: Funções de estado Entalpia (H), Entropia (S) e Volume molar (V) em função da temperatura, destacando as diferenças entre líquido, cristal e vidro. Esquerda e superior direita: Fatias de “caixas” de dinâmica molecular, destacando a distribuição de íons Li + (cor laranja) no vidro simulado. Inferior direito: Espectros de RMN mostrando as diferenças entre o vidro preparado por têmpera por fusão, vidro após relaxamento após recozimento por tempos variáveis a uma temperatura 20°C abaixo da temperatura de transição vítrea, vidro contendo núcleos de cristal e vidro totalmente cristalizado.

 


Referência do artigo científico: Structural rearrangements during sub-Tg relaxation and nucleation in lithium disilicate glass revealed by a solid-state NMR and MD strategy. Henrik Bradtmüller, Anuraag Gaddam, Hellmut Eckert, Edgar D. Zanotto. Acta Materialia. Volume 240, November 2022, 118318. https://doi.org/10.1016/j.actamat.2022.118318

Contato de autor: Edgar Dutra Zanotto – dedz@ufscar.br


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