Artigo em destaque: Eletrólito sólido para baterias mais seguras e rápidas de carregar.


O artigo científico de autoria de membros da comunidade brasileira de pesquisa em Materiais em destaque neste mês é: Controlling the Activation Energy for Single-Ion Diffusion through a Hybrid Polyelectrolyte Matrix by Manipulating the Central Coordinate Semimetal Atom. Victoria C. Ferrari, Raphael S. Alvim, Thiago B. de Queiroz, Gustavo M. Dalpian, Flavio L. Souza. J. Phys. Chem. Lett. 2019, 10, 24, 7684-7689. https://doi.org/10.1021/acs.jpclett.9b02928.

Eletrólito sólido para baterias mais seguras e rápidas de carregar

box bateriasNossos celulares, laptops e tablets, assim como os carros elétricos que começam a transitar pelo planeta Terra, não existiriam sem as baterias recarregáveis de íons de lítio. Esses dispositivos foram objeto do Prêmio Nobel de Química de 2019, que reconheceu os trabalhos feitos nos Estados Unidos, Reino Unido e Japão por três cientistas nas décadas de 1970 e 80, voltados principalmente ao desenvolvimento dos materiais que compõem os eletrodos dessas baterias.

Entretanto, ainda existem desafios para continuar melhorando o desempenho e segurança das baterias de íon de lítio e para adequar essa tecnologia a novas aplicações. Um desses desafios se refere ao desenvolvimento de materiais sólidos para o eletrólito dessas baterias, como alternativa aos materiais líquidos ou em forma de gel que predominam atualmente, os quais apresentam um maior risco de provocar acidentes, como as explosões de smartphones que têm sido amplamente difundidas na mídia. Localizado no meio dos eletrodos, o eletrólito tem a importante função de promover o deslocamento dos íons de lítio (apenas eles, e não os elétrons) em suas idas e voltas entre os eletrodos. Por esse motivo, o material do eletrólito deve ser um bom condutor iônico – condição que pode ser mais difícil de se alcançar em materiais sólidos.

Em um artigo recentemente publicado em The Journal of Physical Chemistry Letters (fator de impacto= 7.329), uma equipe científica brasileira apresentou um importante avanço no desenvolvimento de materiais sólidos para eletrólitos que podem ser usados em baterias de íon-lítio e outros dispositivos eletroquímicos (aqueles que produzem eletricidade a partir de reações químicas e vice-versa) e eletrocrômicos (aqueles em que ocorre uma mudança de cor  ou opacidade quando se aplica uma voltagem em um material, como as janelas inteligentes). Utilizando um método de fabricação simples e econômico, que pode ser levado à escala industrial (o sol-gel hidrolítico), os pesquisadores produziram um material sólido de base polimérica que demonstrou um desempenho excepcionalmente bom como condutor iônico. “O baixo valor de energia necessária para ativar o movimento do íon neste material e seu alto valor de condutividade iônica em temperatura ambiente poderão reduzir drasticamente o tempo de carregamento das baterias”, detalha o professor Flavio Leandro de Souza, professor da Universidade Federal do ABC (UFABC) e líder do trabalho.

Foto do eletrólito sólido polimérico com germânio na sua forma final, transparente e flexível.
Foto do eletrólito sólido polimérico com germânio na sua forma final, transparente e flexível.

Este eletrólito brasileiro é um filme leve e flexível da família do polietileno, de aspecto muito similar ao material dos filmes e sacolas transparentes de polietileno que usamos no dia-a-dia. “Do ponto de vista estético, esse material pode proporcionar dispositivos mais leves e com diferentes formas”, comenta o professor Souza. “No aspecto da segurança, traz melhora sem precedente, pois não contém materiais tóxicos na composição e, por estar no estado sólido, não tem risco de vazamento em caso de quebra ou fratura, evitando inclusive explosões usualmente observadas nos dias atuais, causando a proibição de embarque dos mais variados dispositivos”.

O segredo do bom desempenho desse eletrólito reside na presença de um átomo de germânio no centro da estrutura polimérica, chamado de “átomo de coordenação”. De fato, esse átomo metálico modifica a cadeia polimérica, diminuindo suas vibrações espontâneas e atacando assim a principal desvantagem dos polímeros enquanto condutores iônicos: o acoplamento do movimento do íon de lítio ao movimento da cadeia polimérica.

Início da história: um experimento fora dos planos

A ideia inicial do trabalho se remonta aos anos 2001 a 2006, quando Flavio Souza era estudante do mestrado e doutorado em Ciência e Engenharia dos Materiais da UFSCar. Nesse período, sob orientação do professor Edson Leite, Souza estava tentando produzir uma matriz de silício com nanopartículas metálicas, mediante um processo que tinha como etapa intermediária a formação de um polímero, cujo destino final era a queima em um forno comum. Quando Souza observou o polímero sólido, transparente e de fácil manipulação que tinha se formado, decidiu, por pura curiosidade, resgatar o material e submetê-lo a caracterização elétrica para conferir se conduzia níquel. “Nada aconteceu, mas mostrei ao meu orientador, que sugeriu a troca do níquel por um sal de lítio. Para minha surpresa, esse material conduziu; foi então que tudo começou”, relata o cientista. Esse primeiro material, um polímero que continha um átomo de silício no centro da sua estrutura, permitia que os íons de lítio se deslocassem pela sua estrutura sem grande interferência dos movimentos da cadeia polimérica, e por isso foi classificado como um condutor rápido de íons.

Anos mais tarde, já como professor da UFABC e coordenador do Laboratório de Energia Alternativa e Nanomateriais, Souza resolveu retomar esse assunto e propor um desafio para uma jovem estudante de Engenharia de Energia, Victória Castagna Ferrari, que o procurara para fazer iniciação científica. “O desafio proposto e topado foi de tentar melhorar ainda mais esse tipo de material para aplicação em baterias de íons de lítio e janelas eletrocrômicas e responder algumas perguntas de cunho científico”, conta o professor Souza. “A Victória, uma estudante brilhante, rapidamente mostrou que conseguiria levar esse desafio para um nível muito alto”, diz ele.

O trabalho se desenvolveu ao longo de dois anos de iniciação científica de Victória como bolsista da UFABC e mais dois anos como mestranda em Nanociência e Materiais Avançados com bolsa da CAPES, sempre sob orientação do professor Souza.

Durante esse período, Souza e sua aluna quiseram responder a uma série de perguntas científicas. Para isso, utilizaram diversas técnicas experimentais e teóricas e contaram com a colaboração de outros pesquisadores da UFABC: o professor Thiago Branquinho de Queiroz nos experimentos de ressonância magnética nuclear de estado sólido, e o professor Gustavo Martini Dalpian junto ao bolsista de pós-doutorado Raphael da Silva Alvim nas simulações computacionais.

Os autores do artigo. A partir da esquerda: Victoria Ferrari, Raphael Alvim, Thiago de Queiroz, Gustavo Dalpian e Flavio Souza.
Os autores do artigo. A partir da esquerda: Victoria Ferrari, Raphael Alvim, Thiago de Queiroz, Gustavo Dalpian e Flavio Souza.

Inicialmente, a equipe pesquisou se a substituição do átomo de silício por outro elemento (no caso, o germânio) influiria na mobilidade de íons de lítio no material. Os resultados foram excepcionais. “Essa substituição elevou a condutividade em duas ordens de grandeza e reduziu em 50% a energia de ativação”, diz Souza. De fato, os experimentos mostraram que a energia necessária para colocar o íon de lítio em movimento era, no polímero com silício, de 0,27 eV (elétron-volts) e no polímero com germânio, de 0,12 eV. “Esse valor é sem dúvida o recorde na literatura, como o mais baixo obtido para um eletrólito sólido polimérico”, afirma Souza”. Na literatura científica, contextualiza Souza, o valor oscila entre 1 e 0,5 eV.

Novos esforços de pesquisa foram então realizados para entender o motivo pelo qual o germânio tinha tornado o polímero um melhor condutor iônico. A equipe conseguiu entender em detalhe a estrutura dos polímeros coordenados por silício e germânio, o movimento da matriz polimérica, o movimento dos íons de lítio e a interação entre ambos. Os experimentos e simulações confirmaram que a troca do silício pelo germânio não muda o tipo de polímero (a essência da estrutura é a mesma), mas que ela muda, sim, a estrutura eletrônica da cadeia polimérica, modificando a localização dos orbitais mais relevantes  e reduzindo ainda mais suas vibrações espontâneas, o que repercute na interação do íon lítio com a cadeia polimérica.

Este trabalho contou com apoio das agências brasileiras Capes e CNPq (federais) e Fapesp (estadual), e utilizou equipamentos multiusuário da UFABC e do Laboratório Nacional de Computação Científica (LNCC).


 

Para compreender em detalhe como funcionam as baterias de íons de lítio, indicamos este vídeo em inglês:


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