Mulheres na ciência: Entrevista com a presidente da SBPMat, Mônica Alonso Cotta.


Profa. Mônica Cotta no evento anual da SBPMat de 2022.
Profa. Mônica Cotta no evento anual da SBPMat de 2022.

A paixão pela ciência falou mais alto quando, em 1981, Mônica Alonso Cotta escolheu a graduação em Física da Unicamp mesmo sem conhecer diretamente mulheres que atuassem na área.

Mais tarde, no mestrado e no doutorado, também realizados na Unicamp, ela optou por temas de Física aplicada porque queria que seu trabalho tivesse o maior impacto possível na qualidade de vida das pessoas. Essa escolha, que lhe valeu críticas de físicos que consideravam a ciência aplicada inferior à fundamental, colocou a jovem cientista no caminho da pesquisa interdisciplinar.

O caminho se consolidou no pós-doutorado, realizado no Departamento de Ciência de Materiais dos AT&T Bell Laboratories, onde a pesquisadora trabalhou junto a físicos, químicos e engenheiros no desafio de desenvolver a tecnologia wireless.

Hoje, aos quase 60 anos de idade, Mônica Cotta faz parte do pequeno grupo de mulheres que chegaram ao topo da carreira e ocupam cargos de gestão no meio acadêmico. Desde 2020, ela é presidente da Sociedade Brasileira de Pesquisa em Materiais (SBPMat), uma entidade multi e interdisciplinar na sua essência. Desde 2021, ela é diretora do Instituto de Física Gleb Wataghin (Unicamp), a sua alma mater, que é um dos principais centros de pesquisa, ensino e extensão em Física do país. Em ambas as instituições, cabe a Mônica um lugar histórico: o da primeira mulher a ocupar o cargo mais alto. Além disso, ela é professora titular da Unicamp, editora executiva da revista ACS Applied Nano Materials e bolsista de produtividade 1C do CNPq, onde coordena o Comitê de Assessoramento na área de Física e Astronomia.

Quem trabalha com Mônica Cotta sabe que, na sua atuação cotidiana, continuam sempre presentes a busca por melhorar a vida das pessoas por meio da ciência e a preocupação por garantir equidade de gênero no meio científico.

No mês em que se comemora o Dia Internacional das Mulheres e Meninas na Ciência, convidamos a professora Mônica a falar um pouco sobre ser mulher e cientista. Confira!

Boletim da SBPMat: Como foi para você ser uma menina e mais tarde uma mulher na ciência? Compartilhe conosco algumas lembranças sobre as particularidades e dificuldades de ser mulher e cientista.

Mônica Cotta: Eu costumo dizer aos estudantes que já sou muito velha, e muito do que vivi felizmente já não está tão presente na atualidade. Lembro de ser uma menina ‘nerd’, apesar desse termo não existir naquela época. Gostava de ficção científica, tecnologia (o que estava ao meu alcance – achava o máximo a caixa registradora do supermercado, rsrs, pois computadores pessoais só apareceram quando eu entrei na universidade), idolatrava Jacques Costeau (queria fazer oceanografia, mas era bem difícil no Brasil) e por aí afora. Por tudo isso, eu me lembro de não encaixar em nenhum estereótipo feminino daquela época, e isso teve um custo emocional bem grande. Mas meus pais sempre me apoiaram nos estudos. Sou campineira, e para chegar mais próximo da tecnologia possível na minha situação, cursei colégio técnico em processamento de dados e depois entrei na Unicamp em física e computação. Acabei optando por física, porque ciência sempre foi minha paixão. Só que eu gostava de física aplicada, pois sempre quis fazer ciência que pudesse se tornar uma ferramenta para o bem estar social… Isso acabou tornando meu percurso bem ‘acidentado’, com um mestrado em física biomédica e doutorado em ciência de materiais. Se isso me tornou uma ‘não-física’ para muitos de meus colegas, também me deu uma experiência muito grande com o trabalho interdisciplinar e como ‘conversar’ com diferentes áreas. No fundo, o que era uma ‘desvantagem’ acabou virando um grande patrimônio, pois ao longo da carreira tive chance de interagir e aprender com cientistas de muitas áreas diferentes. Isso foi fundamental quando, na última década, resolvi voltar às origens e trabalhar na interface com biologia, utilizando o conhecimento em materiais. Mas, de forma geral, ainda sinto que vivo duas vidas, pois parte de minha família até hoje não tem muita ideia do que eu realmente faço. Nunca consegui transmitir minha paixão por ciência para meus pais e irmã. O marido cientista acabou sendo a melhor opção, pois ele entendia quando eu queria ficar no lab na sexta à noite, ou finais de semana. Meus dois filhos entendem que têm uma mãe ‘workaholic’ porque ela ama o que faz… E minha filha está seguindo caminho similar, pois faz doutorado em neurociências.

Boletim da SBPMat: Na sua percepção, o que mudou para as meninas e mulheres pesquisadoras desde a época em que você era estudante e o que teria que mudar ainda?

Mônica Cotta: Felizmente muita coisa mudou, de forma geral… a começar pelo tipo de ambiente em que vivemos, proporcionado pela tecnologia. Hoje, jovens podem aprender ciência com os (bons) canais de YouTube ou cursos online. E o papel da mulher foi ampliado nas últimas décadas, pelo menos para parte de nossa sociedade. Hoje, uma garota querer fazer física pode até gerar estranheza, porém não a incredulidade e o desconforto que enfrentei em meus dias.

Mas sabemos que parte de nossa sociedade ainda não pensa assim. Infelizmente ainda existe muito machismo e misoginia em nosso meio, confirmados pelas trágicas estatísticas de violência sexual e feminicídios. E mulheres ainda enfrentam barreiras diárias na luta por equidade, inclusive na vida profissional. Por isso, precisamos continuar lutando por educação e igualdade de condições sociais, para todos e todas.

Boletim da SBPMat: De acordo com a sua experiência, quais medidas podem ser efetivas para combater a desigualdade de gênero nas ICTs, nos grupos de pesquisa, nos eventos científicos?

Mônica Cotta: Em primeiro lugar, precisamos falar das desigualdades e aumentar a conscientização sobre microagressões, viés inconsciente etc. para que estejamos alertas e preparadas para combater essas situações no dia-a-dia, e evitar que elas, aos poucos, destruam a autoestima das garotas. Outra medida é sempre se preocupar em manter a representatividade das mulheres em todos os espaços, seja como plenaristas em eventos científicos ou em postos de gestão. Além disso, critérios de equidade precisam ser incorporados nos editais de financiamento, nas avaliações de produtividade, pois sabemos como a maternidade impacta a carreira das mulheres, que também em geral são as ‘cuidadoras’ em caso de doenças ou pessoas idosas na família. Por outro lado, essas lutas devem ser de toda a comunidade, e não só de mulheres. Homens podem e devem ser nossos aliados.

Boletim da SBPMat: Por que é importante que haja meninas e mulheres na ciência?

Mônica Cotta: Talento não escolhe gênero, e de forma geral não faz sentido a ciência prescindir dos talentos de metade da humanidade!! Porém, ciência de qualidade necessita de novas ideias, e ideias vêm também de nossas experiências pessoais, não só de conhecimentos adquiridos na escola ou na universidade. Eu sempre me lembro de um exemplo dado pela Beverly Hartline, uma professora americana que promove as questões de gênero em ciência e na física em particular. Ela usa o exemplo dos banheiros em shopping centers. Em geral, eles são parecidos em layout, porém o tempo de uso é bem diferente para homens e mulheres. Consequentemente, há sempre uma fila imensa nos banheiros femininos, que não ocorre nos banheiros masculinos. Então quem desenhou esses banheiros – provavelmente um homem – não pensou nesse detalhe… Hoje temos o banheiro família, que ajuda muito mães com filhos e pais com filhas que estejam passeando por lá. Eu me lembro de ter ouvido reclamações de mulheres porque entrava com meu filho de 4 – 5 anos no banheiro feminino, porque ele sempre foi alto e elas achavam que ele ‘era muito velho’ para entrar comigo. Enfim, algo incômodo e simples de resolver, mas que levou décadas para ser considerado…. Por isso a diversidade de olhares, advindos das experiências de cada um – e gênero é só um dos componentes na nossa ‘bagagem pessoal’ – são imprescindíveis para ciência de qualidade e disruptiva, que também ajude a encontrar soluções para os problemas mais complexos de nossa sociedade.

Boletim da SBPMat: O que a carreira científica lhe trouxe de bom, de difícil, de novo, de inesperado na sua história de vida até o momento?

Mônica Cotta: Trouxe muitas coisas boas, como o contato com os estudantes, que para mim é fundamental. Nada dá mais prazer do que ver o crescimento pessoal e o amadurecimento profissional que a pesquisa científica pode proporcionar, mesmo fora da academia. Sempre digo que método científico serve para tudo, até para analisar situações da vida da gente, rsrs. Mas destaco o que mais me marcou. Infelizmente, em minha família, tivemos vários problemas de saúde complicados, e uma forma de controlar minha ansiedade nessas situações era estudar tudo que podia sobre o assunto, o que inclusive me ajudou a encontrar soluções naqueles momentos. E para isso, a formação interdisciplinar foi novamente minha salvação! Um médico certa vez pediu minhas fontes para passar aos alunos dele, pois disse que minhas perguntas eram muito difíceis de responder, rsrs.

Boletim da SBPMat: Deixe algumas palavras para as pesquisadoras da nossa comunidade, em especial, as mais novas, que estão passando por dificuldades ligadas à desigualdade de gênero.

Mônica Cotta: Temos que ser realistas e lembrar que dificuldades sempre existirão, e as de gênero entre elas. Porém juntas somos mais fortes. Procure sempre aliados/as entre seus colegas, identifique quem tem os mesmos valores e disposição para enfrentar essas barreiras. O mesmo vale para instituições – como aqui na Unicamp, onde temos a Diretoria Executiva de Direitos Humanos e nela, a comissão de gênero e sexualidade (da qual faço parte por acreditar nisso!). Use todos os apoios possíveis, assim como apoie suas colegas, pois sempre tudo se torna mais difícil quando estamos sozinhas.

A cientista em alguns bons momentos do dia-a-dia: encontro de docentes mulheres do IFGW (2018), participação no UNICAMP de Portas Abertas de 2018, confraternização do grupo de pesquisa em 2018, palestra em evento de divulgação científica do IFGW uma semana antes de a UNICAMP fechar por causa da pandemia, e viagem com a família em 2010.
A cientista em alguns bons momentos do dia-a-dia: encontro de docentes mulheres do IFGW (2018), participação no Unicamp de Portas Abertas de 2018, confraternização do grupo de pesquisa em 2018, palestra em evento de divulgação científica do IFGW uma semana antes de a Unicamp fechar por causa da pandemia, e viagem com a família em 2010.

Comments

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *