Artigo em destaque: Desfazendo o paradoxo dos líquidos super-resfriados.


Uma pesquisa científica realizada na UFSCar traz nova luz sobre líquidos super-resfriados e vidros – dois estados da matéria, no sentido amplo da expressão, que ainda apresentam muitas perguntas fundamentais à ciência. Em especial, o trabalho fornece forte evidência para desfazer um antigo paradoxo envolvendo os líquidos super-resfriados, além de abrir perspectivas para a produção de novos materiais vítreos e cristalinos. 

Líquidos super resfriados são aqueles que, mesmo estando em temperaturas abaixo do ponto de fusão, permanecem em estado líquido. O exemplo mais conhecido é o da água, que congela a 0 °C mas pode ser mantida como líquido super-resfriado mesmo depois de algumas horas no freezer, como mostra este vídeo. 

Mas não apenas a água, e sim qualquer líquido pode estar em estado super-resfriado desde que se cumpram as condições que impedem a formação do primeiro cristal, chamada de nucleação. Contudo, se a nucleação ocorrer, o delicado equilíbrio do líquido super-resfriado se quebrará e ele cristalizará, passando para um estado muito mais estável. Para desencadear esse processo, é suficiente aguardar um certo tempo, agitar o líquido super resfriado ou introduzir um catalizador nele.  

Além de despertar a curiosidade de cientistas e leigos, líquidos super-resfriados têm algumas aplicações em situações em que é necessário diminuir a temperatura até níveis muito baixos sem provocar congelamento (cristalização), como, por exemplo, a conservação de órgãos doados para transplante.  

Neste trabalho, os autores procuraram entender a interação entre dois fenômenos que concorrem durante o processo de cristalização dos líquidos super-resfriados: a nucleação de cristais e o relaxamento, fenômeno que ocorre espontaneamente na estrutura amorfa dos líquidos super-resfriados na sua trajetória rumo a uma fase de maior equilíbrio. Para isso, utilizaram ferramentas de simulação computacional atomística (aquela que permite a descrição da posição de cada átomo de um composto em função do tempo) para simular esses processos no germânio, cuja temperatura de fusão é de 938 °C. Acima dessa temperatura, o germânio “derrete”. Abaixo dela, se mantidas as condições que impedem a nucleação dos cristais, o germânio líquido não solidifica e se mantém como líquido super-resfriado. 

Tudo começou com um paradoxo

A ideia de estudar a interação entre nucleação e relaxamento estrutural surgiu do professor Edgar Dutra Zanotto em 1987, quando ele era um jovem professor da UFSCar e coordenava o Laboratório de Materiais Vítreos, que ele mesmo tinha criado 10 anos atrás.

Foi então que o cientista começou estudar o paradoxo de Kauzmann. Publicada em 1948, essa predição teórica leva o nome de Walter Kauzmann, que foi professor da Universidade de Princeton (EUA) e fez importantes contribuições ao estudo dos vidros e líquidos super-resfriados. O paradoxo afirma que, a determinada temperatura (chamada de temperatura de Kauzmann), a entropia de um líquido super-resfriado deve ser igual à entropia da fase cristalina do mesmo composto. Nesse contexto, se o resfriamento continuasse, o líquido super-resfriado acabaria tendo entropia nula a uma temperatura acima do zero absoluto. Para evitar essa situação, que contraria a terceira lei da Termodinâmica, os líquidos super resfriados deveriam cristalizar antes de relaxar ao estado vítreo, que é um estado não-cristalino, acima da temperatura de Kauzmann. 

Os autores do artigo: Azat O. Tipeev, José P. Rino e Edgar D. Zanotto.
Os autores do artigo: Azat O. Tipeev, José P. Rino e Edgar D. Zanotto.

O dilema despertou tanto interesse em Zanotto, que ele se propôs a pesquisar se a cristalização de líquidos super-resfriados ocorreria em tempo menor do que o relaxamento estrutural. Contudo, a tarefa não era trivial (por isso o paradoxo persiste) e requeria o domínio de ferramentas computacionais específicas. Dessa forma, o trabalho acabou sendo iniciado três décadas mais tarde, quando dois pós-doutorandos especialistas em simulação de dinâmica molecular, Azat Tipeev e Leila Separdar, se juntaram ao grupo de pesquisa do professor Zanotto. Os novos integrantes receberam coorientação do professor José Pedro Rino, também especialista na técnica, que é colega de Zanotto na UFSCar e no Centro de Pesquisa, Tecnologia e Educação em Materiais Vítreos (CeRTEV). Enquanto Azat se debruçava sobre o germânio líquido, Leila trabalhava o mesmo problema com outras substâncias. Alguns dos resultados do trabalho de Leila estão publicados neste artigo do periódico Computational Materials Science.

“As simulações de dinâmica molecular permitem o estudo da cristalização e relaxamento em nível atomístico, em uma região de estados ainda não atingíveis por experimentos de laboratório, para obter informações essenciais sobre as propriedades dos minúsculos núcleos cristalinos em uma escala de tempo extremamente curta e, consequentemente, testar teorias de nucleação e relaxamento”, explica o pós-doc Azat, de nacionalidade russa, quem conheceu o professor Zanotto em 2012 em um evento sobre cristalização de vidros e líquidos na Alemanha e veio pela primeira vez ao Brasil em 2015 para participar da Escola Avançada de Vidros e Vitrocerâmicas organizada por Zanotto com financiamento da FAPESP.

A partir das simulações, os autores determinaram os tempos de relaxamento estrutural e de tensões e os compararam com os tempos de formação do primeiro núcleo de cristal em diferentes temperaturas. “Verificamos que essas curvas se cruzaram na chamada temperatura espinodal cinética, estabelecendo uma região de temperatura onde a (forte) interferência do relaxamento na nucleação deve ser considerada por modelos teóricos para descrever adequadamente a dinâmica da nucleação experimental”, resumem os autores.

À esquerda, representação 2D da configuração inicial e final do sistema estudado: germânio líquido super-resfriado contendo uma semente de cristal inserida e líquido totalmente cristalizado. À direita, tempos característicos no germânio líquido super-resfriado. Curva azul: tempo de relaxamento estrutural. Curvas vermelhas: tempo médio de formação do primeiro núcleo de cristal crítico para diferentes volumes de líquido super-resfriado. Linhas verticais: temperatura de transição vítrea, temperatura cinética espinodal e temperatura de Kauzmann.
À esquerda, representação 2D da configuração inicial e final do sistema estudado: germânio líquido super-resfriado contendo uma semente de cristal inserida e líquido totalmente cristalizado. À direita, tempos característicos no germânio líquido super-resfriado. Curva azul: tempo de relaxamento estrutural. Curvas vermelhas: tempo médio de formação do primeiro núcleo de cristal crítico para diferentes volumes de líquido super-resfriado. Linhas verticais: temperatura de transição vítrea, temperatura cinética espinodal e temperatura de Kauzmann.

Além disso, o trabalho forneceu uma sólida evidência para a resolução do paradoxo de Kauzmann. “Nosso trabalho demonstrou que o líquido super resfriado de germânio cristaliza antes de chegar à temperatura de Kauzmann, evitando a catástrofe de entropia”, diz Azat, que é primeiro autor do artigo que reporta esta pesquisa no periódico Acta Materialia.

Os novos artigos em co-autoria com Azat, Leila e Pedro Rino se inserem na vasta produção científica que o professor Zanotto e seus colaboradores têm na área de materiais vítreos. “O cruzamento dos tempos de relaxação e nucleação acima da temperatura de Kauzmann é de fundamental importância para esclarecer os processos e a dinâmica de vitrificação e cristalização e a própria natureza do estado vítreo”, diz Zanotto.

O trabalho foi realizado com financiamento da FAPESP.


Referência do artigo científico: Unveiling relaxation and crystal nucleation interplay in supercooled germanium liquid. Azat O. Tipeev, José P. Rino, Edgar D. Zanotto. Acta Materialia. Volume 220, November 2021, 117303. https://doi.org/10.1016/j.actamat.2021.117303.

Contato de autor: Edgar Dutra Zanotto – dedz@ufscar.br


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